31.1.18

Por um toque de inveja

«Le double est devenu une image d'épouvante dela même façon que les dieux deviennent des démons après que leur religion s'est écroulé.» ( Heine, Les dieux en exil)

Confesso que ler Freud me diverte, sobretudo desde que me apercebi que o psicanalista era um grande leitor e percebia imenso de literatura.
Ao ler o ensaio L'inquiétante étrangeté, dei com algo em que nunca pensara: afinal, os demónios não passam de deuses caídos em desgraça. Por outras palavras, abandonados pelos seus crentes...
(Creio que já mo tinham explicado, mas eu não percebera, nem sei se a interpretação seria a mesma.)
A verdade é que, para mim, o Bem era a outra face do Mal; ou seria ao contrário? Os deuses e os demónios, indissociáveis, senhoreavam o universo numa competição sem limites, em que nós nos arrogávamos o direito de os imitar, convictos  de que um dia lhes ocuparíamos o lugar...

No essencial, os deuses de ontem, venerados e bajulados, transformaram-se por um toque de inveja humana nos demónios que nos entram pelos olhos e pelos ouvidos e que nenhum exorcista conseguirá extinguir... 

30.1.18

Sine lege

O sistema está blindado.
De modo a estancar o alarme, o peixe-miúdo fica detido; o graúdo, a estas horas, já deve ter zarpado... E se não o fizer, é porque a malha não foi feita para ele.

Não sei se consigo abarcar a extensão da corrupção; fica-me, no entanto, a ideia de que este polvo é intratável.

E depois o que impressiona é o aparato. Sem ele o que seria de nós?

28.1.18

O mito, figura de esperança

Apesar de ser domingo, vejo-me confrontado com sucessivos disparates. Por exemplo, alguém me diz que D. Sebastião é, para Fernando Pessoa, um mito reabilitado...
O que tenho procurado explicar é simples, creio: Fernando Pessoa, dando sequência ao trabalho doutrinário de uma série de ilustres sebastianistas, transforma, em MENSAGEM, a figura histórica que mais contribuiu para a ruína da Pátria, num mito, isto é, numa figura de esperança, tal como fez com muitas outras personagens históricas, essas, sim, bem mais positivas...
No essencial, o que interessa entender é que todo o mito é uma figura de esperança. Ou será que, no género épico, os mitos são tratados de modo diferente?

Bem sei que há por aí quem afirme que a dívida portuguesa é mítica. Só que não estamos a falar do mesmo. Pelo menos, no que me diz respeito, não sou sebastianista, pois não acredito que algum dos atuais heróis venha a ser mitificado... 

26.1.18

a palavra vazia

a palavra solta
cai sem amparo...

a palavra presa
murmura no silêncio

sem amparo
a palavra ainda escorre

arrependida a palavra
definha no silêncio

vazia a palavra...

25.1.18

No campo dos mártires




O restaurante-esplanada foi substituído por uma barraca rolante, a céu aberto.

Para compensar, a Câmara Municipal de Lisboa homenageia os mártires da Pátria de 18 de outubro de 1817.



Oportuno, o Ministério da Educação retirou do Programa de Português a peça de Sttau Monteiro "Felizmente Há Luar!"


Restam os galos, um santo popular, meia dúzia de batoteiros e uns tantos vagabundos... com ar de mártires de vícios endógenos e gloriosos...

Creio, todavia, que hoje é dia de celebrar maio de 68. Pelo que ouvi, na Gulbenkian, a elite encontra-se numa festa de ideias, subordinada ao tema: A IMAGINAÇÃO AO PODER!
Por mim, não sei se os galos têm imaginação, mas sei que cantam! E com entusiasmo...
Da minha distante meditação, nada festivaleira, ressalta apenas que, por ação pouco espirituosa, perguntei a um jovem interlocutor o que é que ele pensava da ideia de que a vida de cada um se pode resumir na epígrafe: CONHECER O PASSADO, IMAGINAR O FUTURO, VIVER O PRESENTE... Singelo, o jovem deu a entender que prefere viver o presente, seja isso o que for...

23.1.18

O que me nauseia

Não é que a situação não me incomode mas, ao tornar-se rotina, finjo-lhe a novidade, suspendendo a palavra como se tal fosse suficiente para lhe pôr cobro...
O que, deveras, me nauseia é a ideia de que estas pessoas, apesar de serem outras, são as mesmas que há anos tolero, ciosas dos seus direitos, mas sem o menor sentido de responsabilidade...
O que, deveras, me nauseia é a ideia de que esse fingimento deixou de ser um ato de defesa para se tornar numa falha de carácter...

22.1.18

O tic-tac

O tic-tac continua indiferente à presença ou à ausência...
É sempre o mesmo balanço! Não lhe pesam as pernas, nem o afligem as articulações. Passa adiante, sem querer saber se a chama continua mortiça ou se algum fulgor se eleva na hora do fim do dia... Nem quando a luz se apaga e a noite se inteiriça, o tic-tac deixa a cadência que, afinal, me preenche a alma ou a vontade que tenho de ter alma...
A alma do mito! Muito para além da história... só que fosse uma pétala que agitasse o jardim... ou este tic-tac que me possui...