6.3.17

A prudente Inês Pereira

Não sei se a reflexão filosófica me acalma, no entanto, quando à deriva, atiro-me à etimologia, acabando inevitavelmente na filosofia, matéria de que pouco sei...
A propósito de Inês que desejava um homem 'avisado e discreto', acabei por embarcar numa viagem ao território da 'prudência'. 
Para além da ambiguidade teatral da definição de cada uma das qualidades, surgiu-me a ideia de que a 'desmiolada' Inês era bem mais prudente do que se imaginava, sem que tal impusesse que fosse virtuosa, pois se "quem sabe o que lhe convém e atua em consequência, é prudente.»
De facto, o escudeiro Brás da Mata é o exemplo do homem imprudente que casa sem ter avaliado o património da nubente, e que se vê forçado a agir, com recurso à violência doméstica para guardar o seu tesouro, partindo para terra magrebina, onde acaba morto à paulada...
Por seu turno, Inês Pereira é uma personagem epicurista, no sentido em que a vida vivida lhe dá os meios para atingir o objetivo primordial, isto é, para folgar quanto lhe convém... a prudência é nela uma virtude inteletual, própria da época renascentista, a que o Concílio de Trento iria em breve por cobro...
Talvez valesse a pena debater um pouco o que pensam sobre a matéria ( a relação entre a sabedoria e a prudência), Aristóteles, Epicuro, S. Tomás de Aquino, kant, Shopenhauer... mas para quê?
Espero que me perdoem a maçada!

5.3.17

DESGASTE

Já transcrevi umas centenas de palavras, li também uns milhares, sem contar as que tive que escutar. No entanto, neste primeiro domingo da Quaresma, só uma me ocupa o pensamento: DESGASTE.
Não é que me tenha sido encomendado algum verbete, nem para tal haveria motivo, pois o significado é óbvio, pelo menos numa das aceções: [Figurado] Enfraquecimento; diminuição de força física; sensação de abatimento.

Na realidade, não é tanto a diminuição da força física que me preocupa... mas o desgaste que resulta da soma dos dias pardacentos em que os asnos desprezam os burros...
Talvez o discurso padeça de incoerência, mas não. A natureza dos asnos é diferente. Em tempos, era aristocrática, hoje, apenas burguesa. Quanto aos burros, esses sempre foram a besta de carga preferida da populaça...
Há dias, em que o desgaste me torna um burro intratável, daqueles que, no próximo cruzamento, me vão deitar ao chão... Só me falta escoicear!
Se a incoerência se acentua é porque a um burro, ninguém nega a teimosia. Quanto ao asno, mais avisado e discreto, nunca se sabe.

4.3.17

A fronteira

Disseram-me um destes dias que os jovens não têm ideia do que é uma fronteira. Até os compreendo! Uns simplesmente não viajam. Outros, quando o fazem, apanham o avião...
O problema não está tanto na perceção das linhas que individualizam os territórios, mas, sim, na ignorância de que o mundo ainda é partilhado por culturas diversas que, para se individualizarem, estabelecem padrões que não devem ser desrespeitados.
Não ter ideia do que é uma fronteira é desconhecer regras essenciais à interpretação e à compreensão de tudo o que se move fora do nosso círculo identitário e, em alguns casos, é atentar contra a própria identidade.
Por isso, a fronteira pode ser um espaço apenas simbólico, mas é ela que nos permite descobrir a alteridade.
Não está fácil respeitar a fronteira tantos são os maus exemplos que enchem o nosso quotidiano... E quando tal acontece, a deriva é o que nos resta.

Fantasia camiliana

Por mais que faça, há tanta coisa em que não posso ajudar: abrir a janela, arejar o quarto, esconder os medicamentos, subir a temperatura, vestir-te, levar-te à rua; convencer-te de que vivemos um dia de cada vez, de que nada serve olhar para trás e de que só amanhã saberemos como vai ser...Sobretudo, não posso ajudar a que os outros se submetam à tua vontade...
Podia deixar-te! Mas para quê? O remorso consumir-me-ia, como se tivesse cometido um qualquer crime...
A verdade é que tu não queres abrir a janela, arejar o quarto, que eu te esconda os medicamentos, que te leve à rua; preferes alimentar-te do passado e hipotecar o futuro. Continuas a querer alienar os outros, alienando-te a ti própria...
Quanto a mim, não te importas que viva a teu lado, desde que o faça servilmente.

3.3.17

Os eventos parecem granizo

Nada de consistente, apenas poeira. Ao contrário do granizo, a poeira permanece. Não se sabe por quanto tempo... em todo caso, os eventos  parecem granizo.
Caem sem querer saber do rumo e diluem-se na nulidade das convicções.
(...)
Dizem-me que os saberes chegarão a seu tempo e não tem de ser no tempo de cada um! Agora, é tempo de folgar! 
(...)
No entanto, as ratazanas, ao primeiro sinal de descalabro, fogem para o paraíso fiscal mais longínquo, deixando-nos a pagar o naufrágio. E porquê? Porque nada é consistente, tudo é poeira. 

2.3.17

Falhada a depuração

Hoje, perguntaram-me se as férias foram boas...

Há espaços onde as palavras, por mais que as filtremos, se tornam ineficazes e, em múltiplos casos, agravantes... Filtrar as palavras é uma espécie de alquimia cujo fito é depurá-las, despi-las até que da sua nudez surja alguma melodia...
Infelizmente, falhada a depuração, percebemos que a alternativa era o silêncio, mas essa compreensão chega sempre tarde...
Deve ser por isso que os psiquiatras optam pela anestesia perceptiva e os psicanalistas fizeram voto de silêncio, deixando o paciente a contas consigo próprio...
Outrora, no recôndito das grutas, o silêncio incomodava de tal modo que a palavra jorrava líquida e catárquica...

1.3.17

Homens Bons, de Arturo Pérez-Reverte

Hombres Buenos é o título de um romance histórico espanhol, publicado em 2015, em que o seu autor, Arturo Pérez-Reverte, nos convida para uma viagem às profundezas das contradições morais, ideológicas e sociais do séc. XVIII espanhol e francês.
A tarefa é aparentemente simples, pois se trata de iluminar a Espanha obscurantista, disponibilizando-lhe a Encyclopédie Française, o que exige a viagem árdua dos académicos don Pedro Zárate e don Hermógenes, cuja missão é adquirir em Paris os preciosos e raros 28 volumes da 1º edição... 
As dificuldades sucedem-se ao mesmo tempo que os académicos se descobrem e mergulham num novo universo, guiados pelo abade Bringas - personagem fascinante, arauto da Revolução que se anuncia, mas que poucos anteveem, a começar pelos enciclopedistas, que acreditavam que as Luzes seriam suficientes para por termo ao Antigo Regime.
Este romance é um instrumento precioso para melhor compreender ou revisitar o séc. XVIII, sem esquecer o modo como o autor franqueia a sua oficina de escritor, revelando as diligências necessárias à execução de tão ambicioso projeto.
Ler é, neste caso, uma verdadeira odisseia intelectual...