30.4.16

Paul Verhoeven dos anos 60

Li algures que Paul Verhoeven (Amesterdão, 1938) é um realizador mal comportado ou, pelo menos, que a sua obra desafia a moral instalada.
Talvez seja verdade, no entanto, a "Cinemateca com o IndieLisboa" acaba de mostrar cinco dos seus documentários, realizados entre 1960 e 1965, e fiquei com a ideia de que este realizador não seria assim tão mal comportado.
No documentário HET KORPS MARINIERS, a celebração dos 300 anos do Corpo da Marinha (1665-1965), não vi ponta de sátira, não vi sombra de ironia. O Corpo da Marinha é instruído para um cenário expansionista e de hegemonia territorial.
(...)
O tema do mau comportamento preocupa-me por causa da ambiguidade com que o perspetivamos. Nuns casos, tudo fazemos para nos vermos livres dos mal comportados; noutros, incensamo-los pela rebeldia de que são capazes... E em muitas situações, os mal comportados que rejeitámos acabam por ser objeto da nossa veneração secreta...  

29.4.16

Há coisas que aborrecem!

Só pode ser força de expressão dizer que 'há coisas que aborrecem'. A própria 'força de expressão' não me agrada, parece-me querer exprimir uma certa atitude mental de quem é preguiçoso, mas não se consegue calar...
Não querendo queixar-me dos do costume, olho hoje para  a Avenida Gago Coutinho, pejada de táxis, no sentido do Areeiro e quase vazia no sentido contrário - os poucos automobilistas eram forçados a circular na faixa do bus; as restantes faixas serviam as forças da ordem, encavalitadas em motas alemãs, exibindo o seu potencial de fogo... Fiquei um pouco apatetado, vindo-me à memória "A Inaudita Guerra..." do Mário de Carvalho.
A verdade é que não gostei daquela encenação poluidora e anacrónica. Nem daquela nem da maioria das 'formas de luta' que recorrem ao desperdício...

E a propósito de desperdício, aborrecem-me os restaurantes onde se pode comer à tripa forra por uma dezena de euros. Com tanta miséria, empaturrar-se deveria ser considerado crime! 
Acontece que, por razões familiares, ao início da tarde, vi-me acantonado numa dessas manjedouras. Contrariado, lá escolhi três ou quatro ingredientes, e fui avançando no esvaziamento do prato ao ritmo dos outros comensais e, quando menos esperava, surge um simpático funcionário que me interpela: - Então, o sr. não se serve de mais!?
Francamente, bastava olhar para mim, para perceber que isso me aborrecia...

28.4.16

Fernando Cabral Martins na ES de Camões

A memória é um elemento essencial de qualquer poética. Pelo menos é o que infiro das palavras de  Fernando Cabral Martins que, hoje, se deslocou à Escola Secundária de Camões para abordar o tema "Algumas Imagens da Poesia de Mário de Sá-Carneiro". Não tanto a memória do tempo vivido pelo jovem Sá-Carneiro, há mais de 100 anos, no Liceu Camões, nem sequer a memória da relação privilegiada com Fernando Pessoa, mas, sim, o papel da memória na génese e na substância do ato poético. 
O que Fernando Cabral Martins procurou vincar foi que o que, hoje, deve interessar é o legado poético e não tanto o Poeta, porque só a poesia dá conta do diálogo que ele foi capaz de estabelecer com o modernismo baudelairiano e com as vanguardas que foram respondendo às várias crises despoletadas pela revolução industrial: a crise da vida social ( o anonimato do homem citadino); a crise da comunicação (o impacto dos novos mass media); a crise psíquica ( o dilema da identidade).
Neste sentido, o cosmopolitismo de Mário de Sá-Carneiro foi um fator essencial à produção de uma vanguarda - a vanguarda de Orpheu - em que as fronteiras entre as diversas artes se esbateram, gerando sucessivas expressões artísticas (paulismo, futurismo, cubismo, expressionismo, interseccionismo, sensacionismo...) e, sobretudo, agindo de  forma visceral naquele que é hoje considerado o expoente máximo da geração do Orpheu: Fernando Pessoa.

Eu não sou eu nem sou o outro
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o outro.
   Lisboa, fevereiro de 1914

Na poesia de Pessoa há extensos vestígios da Eurídice que nunca desapareceu da arca pessoana...

(Outros tópicos merecedores de atenção: a ideia de que a vanguarda não implica rutura;  a noção de que os poetas decadentes não o são - combatem a decadência; o paulismo como "disparate" provocador de bom senso; o interseccionismo, expressão literária que fixa o essencial do cubismo; os "performers" modernistas; Mário de Sá-Carneiro, produtor do Orpheu, financiado pelo pai...); a sinestesia, intersecção de duas sensações ou de várias realidades distintas; a centralidade de 1915...)

PS. Fernando Cabral Martins na ES Camões: 27.10.2009; 27.01.2011; 28.04.2016

27.4.16

Porquê eu?

Explicar a técnica narrativa de um autor como Saramago não é fácil, sobretudo explicar o modo como o narrador se posiciona em relação à história e procura coagir o narratário a acompanhá-lo na construção de um ponto de vista demolidor da História oficial e da verosimilhança tradicional. O discurso do narrador, nas suas diversas faces, desconstrói a expectativa do leitor tradicional e dá um abanão nas convicções académicas e populares.
Em abstrato, nada disto é inteligível, o que determina uma estratégia de leitura minuciosa, lenta, capaz de pausas mais ou menos prolongadas para clarificar as múltiplas referências de que o texto se alimenta. Só quem acompanhe este processo didático poderá fazer uma pequena ideia de como a atitude dentro da sala de aula pode conduzir ao sucesso ou ao sucesso interpretativo, e consequentemente à formação do "leitor". Sim, porque o leitor não nasce feito nem deve ser objeto de formatação.
Há muito que acredito que aprender a ler é uma atividade que deve ser cultivada diariamente, embora os meus atuais interlocutores andem muito distantes deste ponto de vista. Não todos, felizmente! Mas há uns tantos que se estão marimbando, e que perturbam permanentemente o processo de aprendizagem...
Por princípio, resisto até um limite que, no meu caso, é o da minha própria dispersão. No entanto, em cada aula, selecciono um "alvo" e pergunto-lhe o "que é que o traz à sala de aula". Em regra, a minha pergunta fica sem resposta ou, melhor, acabo por ser confrontado com uma argumento definitivo: - Porquê eu?
Um bom exemplo de pressuposição, porque, afinal, há tantos outros desatentos, marimbando-se. O implícito fica comigo: Deixe-me em paz, vá chatear outro... Eu sei muito bem ler! Não preciso disto para nada...    

26.4.16

A racionalidade conjugal da morgada de Travanca

A presidente do Conselho de Finanças Públicas (CFP), Teodora Cardoso, rejeitou hoje que este órgão consultivo tenha uma postura ideológica, defendendo antes que respeita a racionalidade económica.

A racionalidade económica é um conceito que me provoca azia. Em primeiro lugar, porque a racionalidade só pode ser estabelecida pela razão humana; em segundo lugar, porque a economia é uma categoria que não deve descurar a ideologia que, pela sua origem, pressupõe um governo do homem para o homem.
Para mim, não é admissível que um perito em finanças públicas tenha uma visão da governação estribada nas regras do galinheiro de salazar: os trabalhadores põem os ovos e os safardanas abocanham-nos...

A dona Teodora Cardoso lembra-me outra Teodora, a do Calisto Elói:

- Valha-me Deus! - exclamou ela aflitivamente. Tu dizes-me coisas que me fazem endoudecer! Pois tu não vês que eu já não posso dar o meu coração a outro enquanto for casada com um?
- Vejo que me não amaste nunca, Teodora . Dize a verdade... Nunca me tiveste amor?
- Eu sei cá, primo! ... Se me casasse contigo, tinha-te amor... Assim como casei com meu marido, que hei de fazer eu agora?  
 Camilo Castelo Branco, A Queda dum Anjo - diálogo entre os primos Teodora e Lopo, cap. XXIX.

25.4.16

Que me desculpem os nostálgicos de abril!

Já me sentei ali. Sob um sol tímido, procurei o sopro do dia. Procurei que a aragem me libertasse da asfixia.
Por momentos, a temperatura subiu e eu respirei melhor.
O alívio foi, no entanto, breve. Talvez ainda possa regressar, mas não sei se fará sentido até porque há outros bancos... de jardim que os outros já tiveram melhores dias.
De qualquer modo, hoje, sei que de pouco serve regressar ao passado, por isso interrogo-me se ainda faz sentido "voltar" a 1974, quando uma boa parte da população nasceu depois dessa data... E sobretudo, questiono-me sobre o tempo de vida das revoluções.
A última revolução, se não está moribunda para lá caminha. Que me desculpem os nostálgicos de Abril!

24.4.16

"Alguma coisa mudou"... para pior

«Houve uma época em que os professores estavam muito mais próximos dos alunos, em que se esforçavam por lhes dizer: " As tuas condições atuais não têm necessariamente de moldar o futuro." Mas alguma coisa mudou.» Kalaf Angelo Epalanga, DN, 24 abril 2016

O Diário de Notícias presta hoje um bom serviço, ao abordar a questão do "racismo institucional" que tem medrado nas escolas portuguesas, com poucas exceções, como será o caso da Secundária de Azevedo na Damaia.
Kalaf Angelo Epalanga, entrevistado no mesmo diário, dá conta de que, na sua opinião, os professores mudaram de atitude - tornaram-se mais distantes e menos conhecedores do meio onde trabalham...

Eu concordo que alguma coisa mudou para pior. Em primeiro lugar, mudou o modelo de formação de professores que, nos anos 80 e 90, dava particular atenção à individualidade do aluno e ao meio. Depois, a partir de 2005, mudaram o estatuto do professor e do aluno.
O primeiro foi transformado em «mão-de-obra» indiferenciada, sem qualquer reconhecimento de saber e de competência relacional e pedagógica. O segundo, o aluno, passou a ser mais um, subordinado a critérios de ensino que descuram por inteiro as aprendizagens iniciais - não basta definir metas -, é preciso alterar os mecanismos que permitam que todos possam atingi-las...
O responsável pelo "racismo institucional" é o ministério da educação, incapaz de definir uma política educativa que proporcione igualdade de aprendizagem, e não de oportunidades porque elas são poucas, independentemente, da origem social e cultural cada cada aluno.