30.8.15

O rosto e a máscara de Passos Coelho

Os contribuintes não vão pagar diretamente, mas (...) indiretamente... Consta que este enunciado foi proferido pelo primeiro-ministro português, Pedro Passos Coelho. Estes advérbios serão de predicado, com valor modal ou de frase com valor avaliativo?  
Se considerarmos o contexto da venda do Novo Banco (e da inerente responsabilidade do Governo), embora contrariando a norma gramatical, vejo-me obrigado a considerar estes advérbios de frase com valor avaliativo.
Como o que interessa é vender o Novo Banco, e Passos Coelho, que já sabe que os milhões da compra não pagam o valor investido pela Banca nacional, pública ou privada, na salvação do BES, decidiu agora colocar a máscara da honestidade, dizendo aos portugueses que estes terão que pagar, mas não de forma direta...
Que alívio! 
Na verdade, os portugueses, que já pagavam de todas as maneiras, ainda não se tinham apercebido de quão agradável é pagar de forma indireta
O que é que o honestíssimo primeiro-ministro nos reserva para a próxima legislatura? A venda ao desbarato da Caixa Geral de Depósitos?

« Dès que nous voulons distinguer ce qui se dissimule sous un visage, dès que nous voulons lire dans un visage, nous prenons tacitement ce visage pour un masque.»
                                                                                                Gaston Bachelard, Le Droit de Rêver, Le Masque, page 202, PUF

29.8.15

Ler 2666


Na tradução portuguesa, são 1030 páginas de peripécias e de personagens excêntricas, criadas a partir de espaços reais, como a Ciudad Juárez, na fronteira do México com os Estados Unidos, transformada em Santa Teresa: o expoente da exploração capitalista, do assassínio de mulheres, do narcotráfico, do crime em todas as suas facetas, da total perda de identidade…
De certo modo, a cidade das fábricas maquiladoras é a nova face do nazismo, como se, afinal, este tivesse saído da Alemanha para o Novo Mundo, lugar de reposição de todas as taras europeias…
Ler 2666 é também revisitar os infernos da guerra, da degeneração e da decadência intelectual ocidental ao longo do século XX.
Finalmente ler 2666 é ter como guia um narrador que se afasta dos academismos, dos críticos parasitas e sanguessugas, e que vive o mais longe possível dos centros de poder. Segui-lo é, para o leitor, uma verdadeira aventura que lhe consome as energias e que o obriga permanentemente a interrogar-se e a posicionar-se no mapa do mundo, na esperança de compreender por que motivos 2666 é o centro do mundo para Roberto Bolaño.
Talvez, porque o mundo se encaminhe a passos largos para o seu ocaso… 2666 lembra-me as profecias de Vieira e de Nostradamus, centradas no ano de 1666

28.8.15

Ter uma ideia...

Ter uma ideia é um processo difícil! Desde que acordo, realizo várias tarefas e ao fazê-lo ocupo o tempo, sabendo que essa é a melhor forma de não ter qualquer ideia...
No intervalo das tarefas, vou dando conta das ideias dos outros e com tal procedimento esqueço o processo de idealização. Por exemplo, se dou atenção à volta à Espanha, à droga que terá circulado na porta 18 (e em muitas outras portas e postigos!), à notícia de que Pedro Santana Lopes não é candidato a presidente da República, porque não tem dinheiro e teme a língua peregrina do putativo candidato Marcelo, aos sírios que terão sido abandonados num camião numa auto-estrada austríaca às portas da Hungria, à Líbia abandonada pelo Ocidente que lhes matou o ditador para agora aquele território ser a porta do tráfico humano para a Europa... se dou atenção a tudo isto, sem esquecer os familiares, os amigos e os conhecidos, fico sem tempo para ter qualquer ideia...
Claro que posso sempre declarar a minha revolta, o meu desconsolo ou, até, a minha alegria se Nelson Évora faz subir a bandeira nacional em Pequim, mas nada disto significa que tenha tido uma ideia...
E o pior é que quando as tenho, esqueço-as de tal modo que me sinto à deriva.   

27.8.15

Chocados com a morte

A morte é a principal notícia dos dias. Os governantes europeus mostram-se chocados, mas a política que defendem e aplicam é a da morte - fecham as fronteiras, indo ao ponto de as murar; filtram as entradas dos refugiados e, ao mesmo tempo, condenam uma parte significativa da população do sul da Europa à emigração...
Em nome de particularismos de todo o tipo, os governantes europeus nada fazem para combater os inimigos das populações, porque o que lhes interessa é, afinal, o controlo das matérias-primas e manter abertos os corredores que lhes permitam exportar, exportar...
Exportar armas, drogas, medicamentos, metais, máquinas, vestuário e calçado, alimentos...
Os governantes europeus mostram-se chocados, mas a política que defendem e aplicam é a da morte.      

26.8.15

Os títulos são tão óbvios e fraldiqueiros

Por enquanto, ainda dou alguma atenção aos escaparates das livrarias. Só que perco a vontade de entrar: os títulos são tão óbvios e fraldiqueiros!
E quando entro, fico com a sensação de que caio numa das várias dornas que ali foram colocadas para me sufocar. A custo, liberto-me das aduelas, e passo os olhos pelas estantes, fixando-me sempre nos mesmos autores à espera de uma obra-prima... a vista turva-se, incapaz de distinguir a árvore do arbusto, e saio. Respiro fundo e sigo o caminho de regresso aos livros que já li e já esqueci ou, então, que ainda não li.
Saio com uma sensação de vazio e de perda. Mas, de certo modo, saio mais tranquilo porque, de facto, nunca tive o desejo de plagiar ninguém, de ser o que não sou. E como tal, conformo-me com as reflexões de Roberto Bolaño, romance 2666, pág. 901:

«A literatura é uma vasta floresta e as obras-primas são os lagos, as árvores imensas ou estranhíssimas, as eloquentes flores preciosas ou as escondidas grutas, mas uma floresta também é composta por árvores vulgares, por ervas, por charcos, por plantas parasitas, por fungos e por florezinhas. Estava enganado. As obras menores, na realidade, não existem. Quero dizer: o autor de uma obra menor não se chama fulaninho ou beltraninho. Fulaninho e beltraninho existem, disso não há dúvida, e sofrem e trabalham e publicam em jornais e revistas e de vez em quando até publicam um livro que não desmerece o papel em que está impresso, mas esses livros ou esses artigos, se você reparar com atenção, não estão escritos por eles.»   

25.8.15

Estado de anomia

ANOMIA é um daqueles termos que pode ajudar a caracterizar múltiplas situações. Por um lado, no que me diz respeito, 'anomia' define a dificuldade em selecionar a palavra apropriada ao objeto, à ideia, ao estado... Com a idade, a anomia vai-se agravando...
Por outro lado, a 'anomia' caracteriza o estado das sociedades em acentuada decadência, cujos membros deixam de respeitar as normas vinculativas; os indivíduos e, por vezes, as corporações passam a agir por conta própria desprezando os valores tradicionais. Aparentemente, os membros mais ativos parecem procurar uma nova ordem, criando situações favoráveis ao caudilhismo...

A anomia, de acordo com alguns teóricos, tanto pode trazer resultados positivos como negativos, sobretudo, em épocas de depressão financeira, económica e axiológica...
Eu, no entanto, quando olho para um país que, nas próximas eleições legislativas, apresenta a votos 3 coligações e 14 partidos, não consigo vislumbrar nada, para além de grupos e grupúsculos que procuram um lugar ao sol, porque, afinal, não sabem produzir nada.

E a prova do estado da anomia portuguesa é que não encontro uma única proposta que mobilize o país. Basta pensar nos milhões de euros consumidos pelos fogos de verão e de outono! Qual é a coligação, qual é o partido, que apresenta um plano concreto para limpar o mato, para limpar a floresta, para desimpedir e abrir acessos, para melhor aproveitar os solos?   Qual é a coligação, qual é o partido, que apresenta um projeto nacional concreto para demolir ou para restaurar o património rural e urbano deixado ao abandono?    




24.8.15

Veneno ambulante

La belleza no es un capricho de un semidiós, sino el ojo implacable de un simple carpintero.
                                                                                                          Osip Mandelshtam

No outono de 1912, um grupo de seis jovens reúne-se em segredo para debater o futuro da poesia: Gumilev, Gorodetsky, Ajmátova, Mandelshtam, Narbur y Zenkevich.

Estes acmeístas russos defendiam a claridade apolínea, opondo-se ao delírio propagado pelos poetas simbolistas russos. 

Esta breve nota foi me imposta por Roberto Bolaño que, na página 843, do romance 2666 narra, de forma sumária, a vida de «um poeta acmeísta e a sua mulher reduzidos à miséria e à indignidade sem repouso», rejeitado pelos outros poetas russos, pois consideram  o acmeísmo «veneno ambulante».

Esta obra parece ter sido escrita para me confrontar com a minha ignorância!