7.7.15

Exibição trem-trem

«Nestes tempos revoltos é incrível como certa parte da nossa sociedade vive na exibição de toilettes milionárias, no oco e vazio trem-trem do comentário da suposta elegância, na bisbilhotice da vida alheia.» Oswald de Andrade, fragmento de um diário de 1948.

Encontrei este fragmento no Diário de Notícias de 26 de abril de 1992, e decidi colocá-lo aqui, porque me parece apropriado pois que, tendo Maria Barroso falecido, o consenso encomiástico substituiu a ferocidade com que certos sectores da sociedade portuguesa habitualmente atacavam e continuarão a atacar a sua família...
Hoje é dia de panegírico,  depois de amanhã, de sarcasmo. 

(...) A morte de quem quer que seja não deveria dar lugar à exibição de sentimentos que, na verdade, não têm origem no coração. Até porque, em muitos casos, se trata de pessoas que apenas agem por interesse.

De regresso a Oswald de Andrade ( Brasil, 1890-1954), aqui deixo mais algumas palavras em que valerá a pena meditar: 

«Num país inculto como o nosso, é na incultura que se devem basear as energias do lirismo e os valores da sabedoria.»

6.7.15

Beco sem saída

Reina uma certa euforia que até se compreende. Por uma vez, o povo disse não ao eurismo. O motivo parece ser de regozijo: David derruba Golias!
David acredita que desta vez é que vai ser: os povos famintos vão unir-se e derrubar o capitalismo; o capital vai mudar de mãos...

Não se vê é como é que a mudança irá ocorrer. Primeiro, porque a solidariedade é um lema raramente posto em prática, mesmo entre os mais pobres. Veja-se o que está a acontecer aos milhares de refugiados e deslocados que todos os dias chegam às costas dos países mediterrânicos... Segundo, porque a mudança pressupõe tradicionalmente o recurso à força, e, mesmo assim, o capital acaba redistribuído entre aqueles dos vencedores que rapidamente se apoderam do poder. O povo sobrevivente fica à míngua ou, no melhor dos casos, vive durante um certo tempo a ilusão da prosperidade resultante da venda do trabalho prestado aos novos senhores.

A esta hora, muitos gregos sentem-se eufóricos, mas os bancos continuam fechados. Soberanos, os gregos não querem estender a mão, e pagar com língua de pau, mas, na verdade, caíram num beco sem saída...

E nós, uns mais otimistas, outros mais céticos, estamos à beira do mesmo beco, embora os «nossos senhores» se mostrem alinhados, os primeiros, por Golias, os segundos, por David...   

5.7.15

O carrossel

O carrossel vai quase vazio. Já houve tempo em que a criançada corria para os cavalinhos... Eu nunca fui de grandes correrias... 
Durante a infância, nunca entrei num espaço de divertimento, tipo defunta feira popular... E se entrei, contentava-me com uma ou duas rifas, quase sempre inutilidades premiadas.
(...)
A minha relação com os espaços de lazer é, afinal, a da infância dos meus filhos - um tempo que prometia trabalho, férias e dinheiro para as gozar!
Para mim, nada do que está a acontecer me surpreende ou assusta. Tenho, apenas, tristeza porque sinto que aqueles que se habituaram à abundância vão ter dificuldade em entender o que é a penúria... Vão ter dificuldade em compreender que sem trabalho não pode haver férias...

... la fonction de l'homme est changer la face du monde. Gaston Bachelard

                                                   A função do homem é mudar a face do mundo!

4.7.15

Zunga de rua em Cascais

 Hoje, fui a Cascais! Como sempre, havia muita gente nas ruas, nas esplanadas e nas praias(?), mas o que me pareceu que tem vindo a aumentar é o número de zungas.
Zungas de rua e de jardim instalam um pano, uma bancada; de pé, de cócoras ou sentados, procuram vender os mais diversos artigos. Vi de tudo: panos úteis e inúteis; artefactos decorativos; produtos hortícolas minimalistas; selos e moedas do império; candeeiros de outro tempo; livros, todos da mesma editora, que pareciam fugir de um implacável abate... até os escritores e escreventes pareciam não escapar à etiqueta: zungas de rua!   





Fiquei, no entanto, com a ideia de que a estátua do rei D. Carlos foi ali colocada não para o imortalizar, mas para nos lembrar que o número de zungas só cresce quando o país empobrece. E nem Cascais escapa!

Quanto ao termo "zunga", pedi-o emprestado a Pepetela, O Tímido e as Mulheres, 2013. 


3.7.15

A vontade

A vontade é uma faculdade cada vez mais adormecida ou, pelo contrário, bem acordada, mas incapaz de gizar um projeto e executá-lo meticulosamente.
Os sociólogos do séc. XIX explicavam o fracasso da vontade, atribuindo-o ao meio e à hereditariedade. Presentemente, os conceitos mudaram de nome, mas não deixam de estar presentes. Também Sartre apontava os outros como sendo a causa do desvario do indivíduo...

Dito isto, convém não pôr de parte que há por aí muita boa gente capaz de demolir a vontade daqueles que tudo fazem para realizar os seus projetos...

Sendo assim, o melhor é identificar e ponderar todos os fatores, antes de dizer o que quer que seja, mas esse é o caminho mais árduo.

2.7.15

Cosmodrama: Le chaos n'est qu'une colère passagère

«Provoquer, c'est sa façon de créer. Pour dire cette lutte première, cette lutte essentielle, ce combat anthropocosmique, nous avons récemment proposé un mot: le cosmodrame. (...) Pour qui s'engage dans un cosmodrame, le monde n'est plus un théâtre ouvert à tous les vents, le paysage n'est plus un décor pour promeneurs, un fond de photographe où le héros vient faire saillir son attitudeGaston Bachelard, Le Droit de Rêver, La Dynamique du Paysage, Presses Universitaires de France, 1970 

Acabo de consultar o Médio Dicionário Aurélio e não encontro o verbete, mas eu gosto da palavra "cosmodrama", e creio que ela só, por si, caracteriza bem o verão europeu: em primeiro lugar, o calor; em segundo lugar, o destino da Grécia; finalmente, a identidade europeia.
Quanto ao calor, não sei se é a idiotice que aquece o ambiente ou se, pelo contrário, é a aproximação do sol à terra que está a gerar a insensatez que vai giboiando; por seu turno, a Grécia,  quer vote oxi (não) quer vote nai (sim), já tem o destino traçado - o aniquilamento, e dos deuses gregos parece nada haver a esperar; finalmente, a identidade europeia, aniquilada a Grécia, não passa de uma falácia...  

Ao contrário do que pensava Gaston Bachelard, o mundo é um teatro onde sopram múltiplos ventos, a única realidade que interessa aos turistas é a paisagem, e os falsos heróis insistem num protagonismo abjeto. 

Relembro, no entanto, uma outra fantástica afirmação do filósofo: O caos mais não é do que uma cólera passageira - "Le chaos n'est qu'une colère passagère". 

1.7.15

A cor não tem vontade

«La couleur distrait, habille, fleurit. La couleur embaume. Mais par elle, nous quittons la terre. La couleur ne travaille pas. La couleur n'a pas de volonté.» Gaston Bachelard, La dynamique du paysage, in Le Droit de Rêver.

O dia é de sombras, até de alguma chuva, mas isso não evita que escolha um banco de jardim, em frente de um parque vazio de crianças. O que será feito delas? Talvez as tenham levado para alguma praia da costa ou as tenham acantonado em alguma escola de pioneiros... Pouco interessa, sento-me e leio a «matéria e a mão» e  a «dinâmica da paisagem» inspirada nas gravuras de Albert Flacon (1909-1994). Sinto que tenho que voltar para casa, envergonhado com a minha ignorância e, ao mesmo tempo, fascinado com a qualidade interpretativa de Bachelard...
Entretanto, levanto os olhos e apercebo-me de que a cor das árvores e do céu está a mudar.  A mudar por efeito da diminuição da luz solar. As árvores na sua verticalidade parecem tingidas da cinza das nuvens que passam por mim, para me lembrarem que o dia é de sombras
                         sombras aéreas que parecem querer refrear-me a vontade....