7.6.15

O desejo de um rei

«Estando já deitado no áureo leito,
Onde imaginações mais certas são,
Revolvendo contino no conceito
De seu ofício e sangue a obrigação,
Os olhos lhe ocupou o sono aceito,
Sem lhe desocupar o coração;
Porque, tanto que lasso se adormece,
Morfeu em várias formas lhe aparece
(...)
«Este, que era o mais grave na pessoa,
Destarte pera o Rei de longe brada:
- «Ó tu, a cujos reinos e coroa
Grande parte do mundo está guardada,
Nós outros, cuja fama tanto voa,
Cuja cerviz bem nunca foi domada,
Te avisamos que é tempo que já mandes
A receber nós de tributos grandes.»

«Eu sou o ilustre Ganges, que na terra 
Celeste tenho o berço verdadeiro;
Estoutro é o Indo, Rei que, nesta serra
Que vês, seu nascimento tem primeiro.
Custar-t'-emos contudo dura guerra;
Mas, insistindo tu, por derradeiro,
Com as não vistas vitórias, sem receio
A quantas gentes vês porás o freio.»

O sonho de D. Manuel, in Os Lusíadas, Canto IV, estâncias 68, 74 e 75

Sobre a finalidade dos sonhos, Freud estabeleceu que não se trata de concluir que o sentido de todos os sonhos é um desejo realizado pois, muitas vezes, esse sentido resultará de uma expectativa angustiada, de um debate interior.

Quando se esperava uma decisão ponderada pela razão, os argumentos mais sedutores saem do sono real, através do Ganges e do Indo. O Oriente aceita submeter-se ao Rei do Portugal, reconhecendo, no entanto, que a guerra será sangrenta.
O masoquismo dos rios orientais é hoje confrangedor. Só que não podemos ignorar que a voz dos rios (assim como a voz de Morfeu) é o desejo de um rei que se mantinha fiel à missão de Ourique e que teve que recorrer a argumentos que fossem capazes de derrotar a voz do Velho do Restelo.
Não podemos ignorar que a lisonja é em causa própria! E o sonho é uma peça literária!



6.6.15

Para lá do ponto final

Para lá do ponto final, ainda parece haver algum tempo... Suspenso das reticências, vejo-me obrigado a pensar no que fazer. Há sempre uma quantidade enorme de papéis e de ferramentas que esperam por arrumação, mas será essa a melhor forma de aproveitar algum talento que possa ter?
O problema é que, ao contrário da parábola dos talentos, estes não me foram dados. Se algum ainda tenho, terei que ser eu a descobri-lo e a pô-lo a render.

Pode ser que, por entre tantos papéis e ferramentas, acabe por encontrar um caminho que me impeça de me tornar uma inutilidade. 
E os apelos à gratuitidade não faltam! 

5.6.15

Ponto final

11 horas da manhã.
Ponto final na atividade letiva neste contexto.
A sala 42 é testemunha desse momento. Apenas, uma aluna neste derradeiro bloco. Analisámos o discurso de uma "Carta a Camões", com a preocupação de emendar a vulgaridade discursiva de quem confunde o registo oral com o escrito. Infelizmente, a tendência é abrasiva.
(...) Uma colega assoma à porta e confirma a solidão do ato, interrogando-se (me) se este será o desfecho mais adequado... Encolho os ombros e respondo que no dia 11 estarei disponível para dar apoio aos alunos de português do 12º Ano, das 9 às 13 horas.
Ponto final.


4.6.15

Os trabalhos do avaliador

Há os que se esmeram no que fazem e há os que, sendo desleixados, procuram por todos os meios compensar a falta de aprumo e de rigor intelectual.
Quando olho para os primeiros, vejo-os atentos, disciplinados, insatisfeitos com qualquer falha que descubram em si próprios; não descansam enquanto não superam a dificuldade por maior que seja. Na hora da avaliação, no geral, prezam a modéstia e os rostos brilham quando o esforço é compensado ...
Quanto aos segundos, impera a desatenção, o incumprimento, o atraso, a memorização de última hora e, em particular, o desprezo dos próprios erros; falta-lhes a vontade de aperfeiçoar as competências e veem no avaliador uma entidade mesquinha que não lhes satisfaz as pretensões. A responsabilidade pelo insucesso é sempre do outro...
Enfim, nesta época do ano, o avaliador acaba sempre só! E assim deve ser.

3.6.15

Tempo mal gasto

Só nascemos uma vez! Só morremos uma vez! Há, no entanto, eleitos que renascem e outros que ressuscitam. Não os invejo... a vida tal como está já é suficientemente dura para querer voltar atrás ou para ansiar por qualquer tipo de retorno, e muito menos eterno...
Daria, todavia, uma parte do meu tempo a quem me libertasse das rotinas para que sou convocado e que, na verdade, não acrescentam nada ao livro da vida ou, melhor, só confirmam que a vida mais não é do que uma prisão, cujas chaves o carcereiro usa ao seu belo-prazer.
Ainda hoje tive oportunidade de, a propósito da oficina do poeta, explicar que a condição humana está, desde sempre, determinada pelos mecanismos da repetição e da variação. Chegado aos exemplos, apercebo-me que, do ponto de vista da retórica, a repetição supera claramente a variação, pois se distribui pelos níveis fónico, sintático, semântico e pragmático, ao contrário da variação que se confina ao nível sintático ... da linguagem.

(...)  De momento, tudo me diz que noventa por cento dos enunciados que tive de suportar ao longo do dia já os ouvira ritualmente, ao longo dos últimos 41 anos...

2.6.15

O livro único

«Quando era criança
Vivi, sem saber,
Só para hoje ter
Aquela lembrança.

É hoje que sinto
Aquilo que fui.
Minha vida flui,
Feita do que minto.

Mas nesta prisão,
Livro único, leio
O sorriso alheio
De quem fui então.»

Fernando Pessoa, 2.10.1933 

Em frente de uma estreita tira de papel, o Poeta olha uma vez mais as barcaças que deixam o Tejo e, cansado da imagem que de si o espelho reflete, volta ao único tempo que o não pode defraudar - a infância. E é ela que solta as velas por colorir...Por ela, pode mentir (fingir) que as grades da prisão, onde sempre esteve encarcerado, se rompem. Por ela, pode mentir o momento em que deixou de olhar para o espelho e para Tejo... e sorrir. Não, da alheia cumplicidade da criança que outrora foi, mas da suavidade que escorre das palavras que fluem de forma natural para a vida daquele dia de plenitude.  

De nada serve insistir que o Poeta está triste ou está contente e que o canto é de lamento ou de regozijo. Seguir tal caminho é nada entender do ofício poético.


1.6.15

O Nabão em flor

Fui à procura da praia fluvial do Agroal e encontrei o Nabão em flor. Dois patos descansavam sobre as pétalas enquanto as avezinhas trinavam na copa dos arvoredos. O Sol, atrasado, fazia gazeta, deixando no ar uma friagem inesperada.
Do que observei, fiquei com a impressão de que, nos dias de canícula, os passeantes se apinharão à espera de uma nesga de praia ou, então, perder-se-ão na Serra em tentadoras comezainas.


Enfim, com o Nabão, está a repetir-se uma situação que começa a ser habitual. Só lhe conheço a nascente, já o Sol está na curva descendente...

Na verdade, eu vivi nas margens do Nabão durante mais de um ano e nunca fora ao Agroal...
Até, a certa altura, me habituara a contemplar a Santa Iria das Portas do Sol scalabitanas, antes de conhecer a cidade dos Templários...
Já sem falar dos "tabuleiros" que, para mim, têm um significado bem diferente e difícil de alcançar nos tempos que correm. Refiro-me aos "tabuleiros de figo e uva a secar"...