31.5.14

Não resisto a colorir o texto...

«Todas as portinholas agora estavam fechadas, um silêncio caíra sobre a plataforma. O apito da máquina varou o ar; e o comprido trem, num ruído seco de freios retesados, começou a rolar, com gente às portinholas, que ainda se debruçava, estendendo a mão para um último aperto. Aqui e além esvoaçava um lenço branco. O olhar da condessa para o lado de Carlos teve a doçura de um beijo. O Dâmaso gritou saudades para o Ramalhete. O compartimento do correio resvalou, alumiado; e com outro dilacerante silvo, o comboio mergulhou na noite…»
Eça de Queirós, OS MAIAS

Não resisto, perante a incapacidade do leitor (?) de identificar a diversidade de sensações no momento da partida do comboio de Santa Apolónia, a colorir o texto de estímulos auditivos, predominantes, visuais, gustativos e táteis...
Esta incapacidade não é inata! Ela mais não é do que o fruto da dispersão, de uma atrofia que vai secando os sentidos.
(...) Agora que os exames se aproximam, pode ser que este triste apontamento ainda possa servir de acendalha...

29.5.14

Contos Municipais, de António Manuel Venda

Ao fim da tarde, irei estar presente no lançamento do livro "Contos Municipais" de António Manuel Venda. E eu que estava convencido que os municípios, se tratados literariamente, só poderiam inspirar romances do tipo "Guerra e Paz", "Crime e Castigo", "Os Meus Eleitores"...


E lá estive no Auditório da Escola Secundária de Camões...
António Manuel Venda, excelentemente apresentado por Mendes Bota, Carlos Moreno e pelo presidente da Junta de Freguesia de Monchique (?,procurou fazer aquilo que os contos, em geral, dispensam: explicar a génese de uma escrita cujo o ponto de partida é a baixa política que nos vai governando desde as autarquias ao poder central. 
Por vezes, António Manuel Venda foi impiedoso com a corrupção, a intriga, a venialidade; outras vezes, sentimental, particularmente no que respeita à sua ligação à terra e àqueles que participaram na sua educação...

Dos 10 contos, apenas li os últimos três. Fica-me a ideia de que a denúncia presente em cada "estória" se disfarça sob a capa do realismo mágico ou, até, de um certo animismo, embora não tão consistente como o de José Lins do Rego, de Luandino, de Mia Couto ou de José Eduardo Águalusa...
De qualquer modo, vale a pena ler estes contos, municipais ou não. E com tantos "casos do dia", o autor tem largo pasto para poder cumprir o desejo do juiz Carlos Moreno: da próxima vez, escreva 20 contos... Creio mesmo que já terá matéria para escrever um romance "Cenas da Vida Autárquica"... e se lhe faltar, Mendes Bota não se importará de lhe dar uma ajuda...

O livro é éditado pela Just Media que deverá dar mais atenção à revisão:
« - Mas, senhor presidente...
- Tem aí a puta da factura ou não?!
- Tenho, senhor presidente, passada pela senhora dona Maria de Jesus Cadela Silva e descriminando diversos serviços de uma forma assim um bocado genérica. É alguma consultoria?
- Não interessa o que ela descrimina na factura, homem!! - gritou o presidente. - Ponha-se a caminho do banco e resolva isto!!!» (pág. 80)

Traquinices

Se me engasgo com as palavras, posso morrer em poucos instantes. Claro que esta afirmação tem todo o ar de excessiva. Quem é que vai morrer por causa de uma mísera palavra!
Se engulo a língua, é sabido que morro em poucos segundos. Claro que esta afirmação já não parece excessiva!
Ora se a língua é constituída por palavras, por que motivo consideramos aceitável que se possa morrer ao engoli-la e achamos risível que se possa falecer engasgado com as palavras?

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Encontrei hoje um poeta que me disse que queria escrever um poema "confuso"... Perplexo, expliquei-lhe que, quando lidamos com as palavras, o objetivo é ser claro mesmo que a noite seja eterna...

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Ao fim da tarde, irei estar presente no lançamento do livro "Contos Municipais" de António Manuel Venda. E eu que estava convencido que os municípios, se tratados literariamente, só poderiam inspirar romances do tipo "Guerra e Paz", "Crime e Castigo", "Os Meus Eleitores"...

28.5.14

O sonho belga

«La Belgique se croit tout pleine d'appas;
Elle dort. Voyageur, ne la réveillez pas.»
        Baudelaire, Les Fleurs du Mal

Nos últimos dias, por mais de uma vez me foi perguntado se a avaliação externa da escola tinha corrido bem.
De facto, não tenho resposta para a questão pois não consigo determinar a intenção subjacente. Temo o amor-próprio do interlocutor. Pressinto que devo encarecer a iniciativa cultural, a abertura à comunidade, o valor formativo da atividade, mas, no íntimo, sei que o encarecimento pouco importa ao inspetor. Ele apenas quer validar ou, se os argumentos apresentados forem convincentes e palpáveis, reformular o relatório final, construído previamente.

Assim, o melhor é continuar a dormir.

Esta mesma atitude pode ser aplicada noutras situações. Sempre que alguém se mostra feliz, o melhor é não o incomodar.
No entanto, na política como nas instituições, surge sempre um desmancha-prazeres! Agora que o António, estava tão Seguro, lá surgiu o outro António, o Costa, a despertá-lo...Quero, desde já, assegurar que não me lembro de ter induzido no ilustre Costa tal traquinice!

27.5.14

Passaram três anos

«E eu sonho o Cólera, imagino a Febre...»Cesário Verde, O Sentimento dum Ocidental
- Identifique dois temas no excerto... Hipóteses: cidade, desigualdade, doença, mulher fatal ...
E a resposta avança pelo campo dentro. É só liberdade, felicidade, fertilidade, fraternidade, produtividade, candura, ar puro, sensações eufóricas, sinestesias ensoalheiradas... (Poema Nós, em versão jesuítica)
Tudo num parágrafo pletórico de rasuras marteladas...
Passaram três anos. Nada mudou! Os olhos continuam longe do texto... A inteligência choca contra o MURO...

26.5.14

O absentismo

«E vivemos de maneira / que a vida que a gente tem / É a que tem que pensar.» Fernando Pessoa, 18.09.1933

Face aos resultados das últimas eleições, apetece condenar o absentismo e, sobretudo, a falta de sinais claros de mudança. O contentamento de vencedores e perdedores é um indicador do estado de decadência a que classe política chegou...
Nestas eleições, o absentismo de mais de metade da população é que merece ser pensado. Os cadernos eleitorais continuam por atualizar; o e-fatura é uma realidade, mas o voto eletrónico não passa de miragem num país onde os jovens, reféns da web, não sabem o que é deslocar-se a uma mesa de voto ou, emigrados, não podem deslocar-se aos consulados... sem falar do elevado número de idosos, sem transporte, acamados ou simplesmente descrentes...
Falta pouco mais de um ano para as eleições legislativas, e nada irá ser feito, nos próximos meses, para atualizar os cadernos eleitorais e para introduzir o voto eletrónico.
Finalmente, embora possa apetecer condenar o absentismo, a verdade é que a maioria dos abstencionistas é o retrato do estado de pobreza a que o país chegou. E dos pobres idosos, de meia idade, jovens, não é de esperar que vão votar a não ser que surja uma esperança de mudança que, infelizmente, acabará por se elevar dos escombros dos valores democráticos...
Os resultados por toda a Europa já prenunciam um novo tempo, inevitavelmente, de maior exigência e  violência...

25.5.14

O muro

O muro é sempre o mesmo. Eu caminho ao seu lado, perscruto-o e ele nem sequer me devolve o eco das minhas palavras. É verdade que a culpa não é dele, o meu silêncio é antigo; braços caídos, vou avançando o passo sem fazer qualquer tentativa para o escalar…
Já nem sei se o muro sempre ali esteve, se fui eu que o criei. Paradoxalmente, as suas metamorfoses incendeiam-me o olhar. Fogo-fátuo! A alma ainda se demora um pouco… Por quanto tempo?
«Triste de quem é feliz! /Vive porque a vida dura.» FP / O Quinto Império