7.11.13

Que a onda já me leva

A onda não tem cor, mas basta vestir uma camisola para ganhar coloração. E quando um grupo veste a camisola,  refulge a cor mesmo sem convicção.
O grupo serpenteia em melopeia e a onda retrai-se em fímbrias de espanto...
Eu, cego e surdo, fico indistinto no aroma do fado...
 
Nada mais posso dizer que a onda já me leva
Que a onda já me leva
Indistinto no aroma do fado...

6.11.13

Um cemitério de palavras

Estou a preparar-me para passar o resto dos meus dias a dialogar com o passado.
Um passado quase milenar que me permitirá revisitar as campas de trovadores de partidas sem regresso e de jogos de sombras palacianas.
Um passado quase milenar de clérigos goliardos, de déspotas régios e de ordens devassas.
Um passado ao serviço de uma fé fundamentalista e argentária, de uma fé censória e inquisitorial.
Um passado de capitães aventureiros, mercenários, traficantes e... de abril...
... mas, agora, reparo que me enganei nas campas.
 
Coitado de mim que, impedido de dialogar com o presente, me enganei no cemitério. 

5.11.13

Metas curriculares de Português e educação literária

I - Aos quinze anos, em termos de educação literária, o jovem deve:

a) Ler textos literários portugueses dos séculos XII a XVI, de diferentes géneros.
b) Reconhecer os valores culturais, éticos e estéticos manifestados nos textos.
c) Contextualizar as obras e os textos literários: por exemplo, época, autor, movimento estético-literário (quando indicado no Programa). 
 
Não sei se aplauda o regresso ao passado! Já em 1970, era assim!
 
II - Ao ler o Programa e Metas Curriculares de Português, em discussão pública, fico com a sensação de que o interregno (1974-2013) se tornou insuportável!
 
... e nem vale a pena referir os autores rasurados, designadamente do séc. XX! Todos os que se tenham evidenciado pelo espírito crítico: Raul Brandão, Aquilino Ribeiro, Ferreira de Castro, Miguéis, Carlos de Oliveira, Miguel Torga, José Gomes Ferreira, O'Neill, Sophia, Al Berto... e todos os vivos, a começar pelo Lobo Antunes, Mário de Carvalho...
 
Em termos de educação literária, estamos entendidos!

4.11.13

Kant explica

Não entendendo o alarme noticioso que, na última semana, se instalou na comunicação social em torno de um casal mediático, decidi dar-lhe alguma atenção.
Inicialmente, o caso pareceu-me irrisório. No fundo, a desavença lembrava-me um reposição de uma novela de Camilo, entre uma burguesa balzaquiana e um velho da horta severo...
No entanto, a falta de decoro e o excesso de linguagem revelados em monólogos claramente encenados, acabaram por me conduzir a Kant... agora muito em moda na província política e filosófica portuguesa:
 
«De tudo  o que é possível conceber no mundo e, mesmo em geral, fora do mundo, há somente uma coisa que se pode considerar boa sem nenhuma reserva: uma boa vontade. A inteligência, a argúcia, o juízo e os talentos do espírito (...) são sem dúvida, coisas boas e desejáveis sob muitos aspetos; mas estes dons da natureza podem tornar-se extremamente maus e perniciosos, quando a vontade que se tem de usá-los, e cuja disposição própria se chama, por isso mesmo, carácter, não é boa.» Kant, Fundamentos da Metafísica dos Costumes.
 
Parece, assim, que a única coisa verdadeiramente boa sem nenhuma reserva - a boa vontade - anda muito arredia do carácter de certos portugueses, por muito inteligentes, argutos e talentosos que pareçam ser...
Nem sempre, a Filosofia é boa conselheira, mesmo se cultivada em Paris!

3.11.13

Ler a tristeza

Há anúncios sobre tudo, até sobre seguros. Mas não há seguros contra os riscos provocados pela leitura de um livro triste.
Os livros do meu país são tristes, todos! E querem que os jovens os leiam, eles que se acham alegres e sedutores.
Os mais obedientes ainda ousam iniciar a leitura, mas acabam por desistir porque não suportam a leitura de livres tão tristes. Alguns confessam a desistência, e, pesarosos, procuram uma explicação, mas a tristeza sufoca-lhes a palavra. São genuínos, estes jovens, chegando a ter pena do professor...
Há muito que não encontro um leitor que compreenda a tristeza que percorre os livros de Miranda, Camões, Bernardim, Vieira, Garrett, Herculano, Nobre, Cesário, Camilo, Pessanha,  Eça, Aquilino, Pessoa,  Brandão, Florbela, Almada, Miguéis, Sena, Rovisco, Belo, Agustina, Alberto, Saramago...
Há muito que não encontro um leitor que compreenda que a tristeza não é uma propriedade dos livros. A tristeza existe em nós, portugueses! Existe em nós desde que partimos... para a Índia.
A sorte destes jovens é que ainda não descobriram que, também, eles são portugueses!    

2.11.13

Ler a estranheza

A "rotina" é a expressão do hábito de seguir sempre o mesmo percurso. Na verdade, trata-se de uma  palavra proveniente da francesa "route". A estranheza inicial desapareceu completamente e pode afirmar -se que, de certo modo, amamos a rotina.Vem isto a propósito da motivação para a leitura, para a escolha de um livro pelos alunos do ensino secundário. 
Apesar do ministério da Educação ter definido um corpus de leitura, constituído por obras de referência, muitos alunos fogem dele como o diabo da cruz.
De preferência, não leem e caso sejam "obrigados", procuram obras cujo mínimo que delas se pode dizer é que são estranhas. Estranhas na língua, na distância temática, geográfica e até temporal. 
Em termos temáticos, a maior estranheza é que não equacionam qualquer problema. Em termos geográficos, raramente, a ação se situa na Europa. E quanto ao tempo, o preferido é o futuro e, por vezes, um passado tão inverosímil que chego a pensar que a humanidade já terá sido extinta...
E há ainda um aspecto que não devo ocultar: as obras escolhidas vêm rotuladas de "best-seller" e foram todas escritas em tempo recorde.
Para o caso de ainda haver por aí um jovem que procure uma obra estranha na língua, na distância temática, geográfica e até temporal, mas que o possa ajudar a conhecer melhor a adolescência no mundo rural, as raízes do Portugal provinciano e atual, a relação com a terra, a pujança da língua, a seriedade do trabalho do escritor, aconselho-o a ler Cinco Réis de Gente (1948), de Aquilino Ribeiro.

1.11.13

As ruas de Portugal


Enquanto se orçamenta o estado e se liquida a administração pública, eu, longe de S. Bento, caminho atento aos sinais de vitalidade económica. Em Sacavém, não preciso de alargar o passo. De um lado da rua, a QUINTA DA VICTÓRIA, em ruínas; do outro lado, uma igreja, ao abandono… Esquecida pelos fiéis, a igreja reconverteu-se! Em vez de vitrais, uma pujante figueira debruça-se sobre os transeuntes, anunciando suculentos figos para o próximo verão…
Desconfio, no entanto, que, em concluio com S. Bento, lá dentro não haverá nenhum enforcado…