31.8.09

A oliveira

                                                                               Quantos anos terá esta oliveira? Apesar da doença que a esventra, persiste hirta e pronta a recomeçar a cada momento... e dá fruto a quem o quiser colher. Conheço-a há mais de 50 anos, no entanto ela parece indiferente à minha presença, um pouco como o elefante ignora a formiga...
A oliveira não avança nem cai, a oliveira cresce e permanece. Mesmo que água lhe falte por uns tempos, a oliveira nutre-se da seiva milenar que gera a vida.
Não conheço os pensamentos da oliveira, mas já percebi que ela não se deixa afectar pela propaganda nem tem qualquer tipo de inveja das minúsculas filhas que se deixaram europeizar.
À oliveira ninguém pede para votar, mas se isso acontecesse ela votaria no arco-íris...

30.8.09

Saramago, o cornaca

«A História é uma tola.
Eu não posso abrir um livro de História, que me não ria. Sobretudo as ponderações e adivinhações dos historiadores acho-as de um cómico irresistível. O que sabem eles das causas, dos motivos, do valor e importância de quase todos os factos que recontam?»
Almeida Garrett, Viagens na minha Terra
Saramago, tal como Garrett, reivindica para o romancista o privilégio de estar do lado da verdade, desde que esta dê a devida atenção ao povo. Ao escritor, iluminado, cabe o mesmo papel que ao cornaca. Montado no cachaço do elefante, o escritor, ora de fato vistoso ora imundo, conduz o povo, não a Santarém ou a Viena, mas ao cinismo e ao cepticismo. A ironia e, sobretudo, a paródia prazenteira dos valores dominantes encarregam-se de nos libertar do peso da História.
No final da leitura, fiquei como a Dona Catarina, ao tomar conhecimento da morte do elefante, Não quis saber, embora não tenha desatado a chorar…
Agora, refeito do impacto, parece-me que Saramago ficou a ganhar a Garrett. Pelo menos por uns tempos, o Ministério da Educação pode declarar A Viagem do Elefante como leitura obrigatória, pois não correrá o risco de cansar os alunos com erudição (desnecessária!), seja ela histórica, política, económica, filosófica, geográfica, literária… Afinal, quem é que tem estômago para ler As Viagens na minha Terra?
« No fundo, há que reconhecer que a história não é apenas selectiva, é também discriminatória, só colhe da vida o que lhe interessa como material socialmente tido por histórico e despreza todo o resto, precisamente onde talvez poderia ser encontrada a verdadeira explicação dos factos, das coisas, da pura realidade. Em verdade vos direi, em verdade vos digo que vale mais ser romancista, ficcionista, mentiroso.»
José Saramago, A Viagem do Elefante
Quanto mais leio Saramago mais me convenço que se ninguém tivesse inventado os milagres, ele estaria no desemprego! Quanto à História, bem sabemos que o espírito do «revolucionário” é reescrevê-la, ou, em alternativa, queimá-la. E quanto à Geografia, não vale a pena esforçarmo-nos, o santo GPS resolve! E finalmente, sobre os clercs não deixa de ser curiosa a nota (solta) na página 227: «Estas observações talvez venham a ser consideradas desnecessárias pelos leitores mais interessados na dinâmica do texto que em manifestações pretensamente solidárias…»
Ora em termos de dinâmica do texto, fiquei finalmente a compreender a gramática do autor: utiliza a mesmo do seu ilustríssimo antepassado: «tão rápido como santo antónio quando usou a quarta dimensão para ir a lisboa salvar o pai da forca.»
E a propósito, em nome de tratamento igual e solidário, é mesmo necessário eliminar os nomes próprios?
Para terminar, e de acordo com a profunda reflexão de Saramago de que não é possível descrever uma paisagem com palavras, deixo aqui uma foto por identificar, assegurando que não se trata do mar das rosas, a norte de Barcelona.

24.8.09

CEDDO

Ontem, vi o filme CEDDO (1977) de Ousbane Sembene (Senegal, 1923-2007). CEDDO documenta o processo de colonização islâmica de um reino africano. Em nome do Corão, o imã vai ao ponto de desapossar o rei do seu título, pois o termo "rei" só poderia ser atribuído a Alá, tal como proíbe qualquer ícone e ídolo. O processo de colonização recorre à eliminação de todos os sinais de identidade do grupo e do indivíduo, terminando numa guerra santa (jiad)...
O filme tornou-se me interessante porque a literatura (e o cinema) que conheço raramente abordam o papel do Islão na destruição das tradições africanas. Neste filme, curiosamente o padre, representante da colonização cristã católica, não passa de um lunático sem tropas, completamente ignorado, apesar de ser colocado no mesmo plano do comerciante europeu, mais ou menos anglo-saxónico, cujo papel é vender álcool (proibido pelo imã) e armas...
De certo modo, Ousbane Sembene documenta a história da colonização: 1º Cristo, depois Maomé que mantém o seu domínio até hoje, apesar da resistência, sobretudo, feminina. De facto, a mulher africana, na maioria dos países continua a ser a maior vítima da colonização islâmica... No essencial, ficou-me a pergunta: - O que é que é mais importante o ser humano ou a religião?

23.8.09

MEDIOCRIDADE...

Nota crítica

António José Silva Carvalho (Vila do Conde, 1948) tem feito o favor de me oferecer os seus livros a que, infelizmente, não tenho dado a atenção que merecem. Confesso que a leitura nem sempre é fácil e nos tempos apressados que nos governam o mais fácil é suspender a leitura…

Por coincidência ou talvez não, decidi levar a bom porto a leitura de duas obras, à partida resistentes e muito diferentes, mas que, afinal, talvez o não sejam: - Que Farei Quando tudo Arde? (D. Quixote, 2001), de Lobo Antunes; Mediocridade (Aquário, 2000), de Silva Carvalho. De facto, Silva Carvalho, no poema “Insignificação”, datado de 6-10-2000, interroga-nos, à semelhança de Sá de Miranda: / que se poderá viver quando a vida arde / e arfa nos mimetismos da presença? / Tanto Silva Carvalho como Lobo Antunes suspendem os géneros literários em que se inscrevem. Coincidências!

No caso do autor de Mediocridade, a pretendida auto-exclusão da poética de raiz greco-romana leva-o, em compensação, à defesa de uma linguagem porética que define, no texto ENTRE do seguinte modo: / A linguagem porética é um discurso / entre, entre a poesia e a filosofia, / capaz por isso de fazer interpenetrar / a abstracção do pensamento tacteante / no tecido afectivo da expressão lírica. / É um espaço onde a temporalidade / ganha o seu momento histórico, / não porque reflicta a ideia do mundo / ou de tempo concebida pela política, / mas porque inventa um outro mundo / capaz de fazer sugerir a presença / do mundo em que todos vivemos. /

Neste poema, Silva Carvalho define de forma lapidar a sua insatisfação com a arte produzida no Ocidente, uma arte serva de si própria ou engajada, incapaz de dar conta do único “mundo em que vivemos”… e, para tal, procura na escrita a língua que dê conta do fulgor do presente, isto é, da nossa fugaz presença no mundo.

O arco temporal deste livro decorre entre 6 de Julho de 2000 e 30 de Outubro de 2000. Numa 2ª parte, podemos ler um conjunto de “Sonetos Imbecis”, situados entre 13-2-1984 e 15-5-1984. E, na 3ª parte, encontramos um lúcido ensaio sobre a escrita porética de Fernando Pessoa / Alberto Caeiro: À Procura de uma Tradição / Alberto Caeiro, A Linguagem Porética e a Estética da Imperfeição.[1]

O título deste obra – Mediocridade - voluntária ou involuntariamente, expressa a reivindicação de reconhecer à língua uma função mediadora, uma função de vida, num tempo em que para se abafar a memória se acelera a morte das línguas: / A língua não pode ser um deserto / nem desertar o mundo, a língua / arfa no sigilo de si mesma , árdua / tarefa para quem procura sentir / a existência como coisa sensível. /(A Dor, 28-9-2000)



[1] - Perante a quantidade de disparates ensinados aos portugueses sobre este heterónimo, ainda vamos a tempo de corrigir o rumo, lendo o ensaio de S.C. E já agora porque não adoptar nas universidades um contrato de leitura que permita aos nossos estudantes ter um efectivo conhecimento de tudo o que se escreve no espaço da lusofonia, mesmo que os lentes não consigam dar conta do recado? Se isso acontecesse, não teríamos um escritor como António (não é Armando!) José Silva Carvalho, zangado com os seus contemporâneos porque estes lhe passaram ao lado e não viram… NÃO O VIERAM VER..

Em 27 de Setembro...

É decisivo que os portugueses votem em consciência. De acordo com a sua consciência e não em função de argumentos catastrofistas ou de dilemas mais ou menos arcaicos.
Há muito tempo que a esquerda e a direita morrerram. Quem nos governa fá-lo em nome de interesses mais ou menos ocultos... e o interesse tornou-se inimigo da necessidade!
Por isso, em 27 de Setembro, cada português deve equacionar as suas necessidades e expressar o seu pensamento, independemente dos que prometem ou dos que nada prometem.
Prometer 'tout court' pode ser a expressão de um sonho, mesmo que se torne irrealizável. Prometer apenas o que se pode cumprir não ´corresponde a qualquer tipo de promessa, é uma obrigação!
E convém ter presente que os políticos não são nem melhores nem piores do que nós. São apenas o nosso rosto...
E independentemente do sentido do nosso voto, no dia 28 de Setembro, o rio seguirá o seu antiquíssimo caminho...

22.8.09

A falha...

Quando me falha (ou falha à língua) o termo capaz de expressar o sentido, posso sempre recorrer à catacrese... Resta, porém, saber se a falha justificativa do recurso à figura é da língua ou minha...
Nos últimos dias, por razões diferentes, atravessei dificilmente Sintra e percorri, surpreendido, a parte histórica de Tomar. No primeiro caso, falhava o lugar para estacionar ou para sentar (tudo era movimento apertado de gentes mais ou menos estrangeiras ao lugar!); no 2º caso, edifícios e ruas em ruína pareciam apontar uma falha prístina... Lugares por mim longamente vividos, mas que, por estes dias, esperam a chegada não apenas de turistas mas, sobretudo, de dirigentes responsáveis para que as arribas soalheiras deste país não desabem definitivamente...
Nem sempre falha a língua ou o ser, nem sempre precisamos de recorrer à catacrese...

16.8.09

Finalmente...

António Lobo Antunes, Que farei quando tudo arde? (2001)

Finalmente, conclui a leitura deste romance... De facto, agora que cheguei à página 637, sinto que deveria recomeçar a leitura, sobretudo, querendo dizer algumas palavras sobre a referida obra. Honestamente, talvez fosse melhor não o fazer, mas por respeito pelo meu velho amigo Sá de Miranda que, consciente das fraquezas do Amor e da Razão, decidiu trocar o Paço pela Arte. E por isso aqui o cito para que António Lobo Antunes compreenda que o Destino o afastou definitivamente do Paço, onde o senhor dava por nome Gil Vicente. (E nem a nova noiva lhe devolverá a Ilha para sempre perdida!)

Desarrezoado amor, dentro em meu peito,

tem guerra com a razão. Amor, que jaz

i já de muitos dias, manda e faz

tudo o que quer, a torto e a direito.

Não espera razões, tudo é despeito,

tudo soberba e força; faz, desfaz,

sem respeito nenhum; e quando em paz

cuidais que sois, então tudo é desfeito.

Doutra parte, a Razão tempos espia,

espia ocasiões de tarde em tarde,

que ajunta o tempo; em fim, vem o seu dia:

Então não tem lugar certo onde aguarde

Amor; trata treições, que não confia

nem dos seus. Que farei quando tudo arde?

Sá de Miranda

Quando o relativismo comportamental alastrava imperialmente, qual napalm, António Lobo Antunes decidiu mergulhar nos estilhaços de uma família desestruturada, retratando-a de forma fragmentada e, sobretudo, dando espaço a descontextualizadas, travestidas e sangrentas vozes, para sempre incapazes de se libertarem de iniciáticas cenas de traição e de despersonalização.

Fascinado por essa nova realidade, o autor arrasta o leitor para um espaço circular e de non-sense, criando um labirinto em que a palavra e a imagem se tornam no único fio redentor. Quem procura acção situada no tempo e no espaço, quem procura compreender as causas e os efeitos, quem, no limite, admite a peripécia como factor de complexidade ou de equívoco, bem pode desistir da leitura…, aqui tudo se traveste, tudo se intersecciona num permanente fascínio pela enumeração verbal, pela iteração verbal, pelo tom verbal, pelo ritmo verbal, pela imagem verbal, pela metáfora luminosa, como se as coisas (a realidade) se limitassem a flutuar em torno da voz do criador…

À sua maneira, A.L. Antunes dá, neste romance (?) a mesma resposta que Sá de Miranda: Quando tudo (as coisas, os padrões) entra em decadência, então, só a linguagem pode gerar novos possíveis narrativos. Apenas a arte nos pode redimir, principalmente se porética… E quando isso acontece, a leitura torna-se lenta e dolorosa…