1.5.08

Um dia reversível...

Por ironia, ou talvez não, entrei hoje (dia do trabalhador)  na Igreja da Santíssima Trindade, em Fátima. Nada do que vi me emocionou: a extensão da arena, a largura e a altura das portas, o crucifixo misógeno, os peregrinos-turistas, o alheamento da minha acompanhante, tudo me trouxe à memória a vastidão ensoleirada do recinto de outros fervores mais convincentes e menos decadentes... Nunca ali estive a cumprir uma promessa, nem nunca compreendi quem as cumpria, mas tempos houve que me sentia solidário daquelas vozes e gestos de submissão. Hoje, ali, esmagado pelo aproveitamente indecoroso das esmolas dos mais nobres, compreendi que a dúvida que me persegue desde que me conheço não faz qualquer sentido. E, também, entendi que o fervor que noutrem conheci em tempos idos se pode tornar em pedra fria. 

26.4.08

Não percebo o alarido...

Toda a gente parece preocupada com a nossa falta de memória. Os jovens e os menos jovens ignoram o que foi o 25 de Abril. Assim mesmo, sem a preocupação de completar a frase: 25 de Abril... de 1974. Quando não completamos as frases, pressupomos que todos sabem do que estamos a falar e, preguiçosamente, deixamos ao interlocutor o papel de confirmar o nosso raciocínio. Nem sequer aceitamos que o outro nos interrogue. Por exemplo, o que é que terá acontecido a 25 de Abril de 1140? No entanto, todos sabemos que ninguém vem ao mundo, sabedor do que aconteceu anteriormente ou no próprio dia do nascimento.

Por outro lado, lidamos com outra dificuldade: não podemos armazenar mais do que uma certa quantidade de informação. Mesmo que nos esforçássemos por reter toda a informação, as lacunas rapidamente se tornariam visíveis ou, em alternativa, a memória curtcircuitaria, passe a ousadia.

Deste modo, aqueles que agora parecem preocupar-se com tamanha ignorância dos portugueses deveriam, antes, explicar por que motivo varreram a História (tout court), a História da Cultura, das Religiões, da Literatura, da Arte, das Instituições para um canto dos curricula.

Na minha perspectiva, isso só aconteceu ( e já não é pouco!) porque tememos o despertar dos demónios (furtos, torturas, autos-de-fé e massacres que protagonizámos ao longo dos séculos), e, também, porque detestamos a comparação, privilegiamos a vaidade e a inveja.

Jamais esquecerei, no pós-25 de Abril de 1974, a corrida aos cursos de História e os milhares de licenciados que deseperamente descobriram o desemprego. Todos queriam conhecer a verdade que o passado lhes escondera. Mas a porta da História fechou-se-lhes, como se a caixa de pandora pudesse aniquilar os Heróis de Abril (os que vinham de longe e os novíssimos que, logo, souberam apanhar o comboio e se encarregaram de reescrever a sua própria história).

Hoje, 34 anos depois da Revolução ( também no Estado Novo se falava de revolução: 5, 10 anos depois...) querem mais, uma vez culpar a escola e, mesmo, a comunicação social, deste nosso desconhecimento, quando, de facto, foram os políticos que, desejando legitimar o poder conquistado na rua ou nas urnas, decidiram pôr uma pedra sobre o assunto. Nada do que acontece na sociedade portuguesa ou outra é fortuito: tudo traz o ferrete da decisão, da manipulação ou da omissão de quem nos tem (des)governado.

E nesta data, proponho-vos uma leitura: A ARTE DE FURTAR.

19.4.08

Um dia feliz...

A Área Projecto é uma área que procura envolver os alunos na concepção, realização e avaliação de projectos, permitindo-lhes articular saberes de diversas áreas curriculares/disciplinares ou disciplinas em torno de problemas ou temas de pesquisa ou de intervenção.

Ontem, 18 de Abril, assisti, no Auditório Camões, a uma cabal demonstração do que significa construir um projecto, envolvendo plenamente os alunos na concepção e realização .

O resultado, em termos de espectáculo intercultural, chegou a ser brilhante. E apesar de, em palco, podermos observar desempenhos qualitativamente diferenciados, ficou a sensação de que este grupo de artistas colocou acima da performance individual o espírito de grupo.

Conhecendo muitos daqueles  jovens, foi com surpresa que assisti a actuações desinibidas e seguras e, por vezes, inesperadas daqueles que, frequentemente, consideramos tímidos e /ou pouco criativos, para além de pouco cumpridores dos deveres escolares. O trabalho apresentado prova precisamente o contrário, e dessa transformação há que dar os parabéns à professora Teresa Palma.

No que me diz respeito, fico a pensar  se, num futuro próximo, não será possível articular a área projecto "dança" com alguns episódios de certas obras que estes mesmos jovens relutantemente lêem nas aulas de Português.

Esperemos, entretanto, que não surjam entraves mesquinhos e autistas à continuação desta área projecto, porque dela muito beneficiam os alunos, a Escola Secundária de Camões e a respectiva comunidade educativa. 

 

18.4.08

O mato é um mau exemplo!?

Os exemplos de desonestidade grassam que nem mato. Não há uma notícia que dê conta de um gesto desprendido.

Os argumentos são pouco convincentes, desarticulados, e, no entanto, fazem o seu caminho. Nem na vida nem na morte, escapamos à trapaça.

Já um dia disse que não vale a pena dar exemplos. E sempre que os dou, fico com a sensação de que não sou entendido, porque, de facto, para que eles sejam persuasivos é necessário que mergulhemos no mesmo rio. Um rio que deixámos de ver, cujo cais deixou de ser lugar de encontro.

Sinto, também, que esta preocupação com o entendimento alheio é um luxo narcísico inconsequente.

Que fazer?

Cerremos as persianas e fiquemos a ouvir a chuva que voltou a Abril!

(E do fundo destas antigas muralhas revejo um Tejo que se espreguiça e me leva para paisagens insuspeitas... libertas de exemplos.)

Quem quer explicar por que motivo o "mato" é um mau exemplo?

E que pensar da "notícia", do "gesto", da "morte", do "rio", do "Tejo", das "muralhas" , das "persianas", da "chuva", de "Abril", num texto de quem quer fugir dos (maus e dos bons) exemplos?

 

13.4.08

Os batoteiros

Ano de 1540.

Habitantes de Taiquilleu: « ... queira Deus por sua bondade que não seja esta nação barbada daqueles que por seu proveito e interesse espião a terra como mercadores, e depois a salteão como ladrões, acolhamonos ao mato, antes que as faíscas destes tições branqueados no rosto com a alvura da cinza que trazem por cima, queimem as casas em que vivemos, e abrasem os campos das nossas lavouras, como tem por costume nas terras alheas...» Fernão Mendes Pinto, PEREGRINAÇÃO, cap. 41. 

Ano 2008.

Sorriso de orelha a orelha, olham-nos nos olhos como se acabassem de prestar um grande serviço ao Estado e aos professores... Num apertado jogo de cintura, acabaram por deixar de pé um modelo de avaliação iníquo, adiando a sua aplicação para o próximo ano lectivo. Uns, felizes, porque salvaram o modelo; outros, eufóricos, porque salvaram o 3º Período.

Nos bastidores vão, agora, distribuir as prebendas, indiferentes à necessidade de definir um projecto educativo para o país, e que seja aplicado, indepentemente do vencedor das próximas eleições. A educação não é feudo que possa ser gerido por um partido ou por uma coligação de interesses.

Tudo não passa de uma dança de cadeiras, em que grandes e pequenos aproveitam a confusão para promover os seus interesses, para torpedear regras que pensávamos sagradas: negociamos o que não é nosso; favorecemos os amigos e os correligionários; viciamos processos; omitimos; escondemos o jogo.

6.4.08

A fórmula política...

No dia 4  deste mês de Abril, deixei os meus alunos sem aula para ir ouvir dois Secretários de Estado. Em vez de ensinar a ler Saramago, sentei-me no Auditório do Instituto de Ciências Sociais e Políticas e, pacientemente, esperei que, finalmente, me fossem apresentadas soluções para o problema da avaliação do desempenho docente. Ao meu lado, inúmeros presidentes de conselhos executivos, desprezivelmente sentados nas escadas de acesso, acotelavam-se na mesma expectativa. ( Alguns saíram frustrados por não ter visto nem ouvido a Senhora Ministra)

À medida que o Professor Doutor Jorge Pedreira discorria sobre as orientações e os procedimentos máximos e mínimos, eu pensava no estado deste triste Estado: Como era possível que tal matéria ali estivesse a ser defendida politicamente (e tacitamente rejeitada pela maioria dos ouvintes)? Na minha triste ignorância, as decisões políticas, depois de aprovadas pelo Governo ou pelo Parlamento e pelo Presidente da República, deveriam ser trabalhadas e incrementadas pelos técnicos superiores do Ministério. Mas não, naquela mesa nem sequer estava presente um representante do Conselho Científico criado para a coordenação do processo!

Quando me foi dada a oportunidade de fazer uma pergunta, desisti. As que ouvira eram suficientemente mesquinhas, marginais e autistas para perceber que nem os governantes nem os governados estavam ali para servir o Estado. O interesse do Estado deve sobrepor-se aos interesses dos partidos e não pode obedecer a qualquer calendário eleitoral. Mas ali, nada disso tinha qualquer valor.

Apesar de tudo, compreendi que aqueles governantes (apóstolos, talvez!) se sentem prisioneiros de uma estratégia tão apertada que são obrigados a dar cara, do norte ao sul do país. Perante o desperdício dos fundos europeus, a U.E. impôs-lhes a avaliação quantitativa de todos os serviços do Estado e, consequentemente, de todos os funcionários públicos. A sua avaliação depende do êxito desta estratégia. Desesperados, mostraram-se disponíveis a flexibilizar o modelo a um mínimo residual caricato, desde que os Conselhos executivos respeitem e preencham correctamente os formulários ( os normativos).

Não podendo eliminar, de imediato, a Função Pública, depois de a terem colonizado, os Partidos decidiram eugenizá-la.

No terreno, a luta política cerra fileiras..., fazendo tábua rasa de qualquer hipótese de projecto educativo nacional. E nesse aspecto, há consenso entre governantes e (des)governados: em vez de um projecto 10.000 projectos! Brevemente, teremos um projecto por autarquia.

E, ainda, agora, continuo sem saber porque me convocaram para aquela sessão de trabalho com 500 pessoas, quando bem poderia ter ficado na escola a ler Saramago com os meus alunos, se bem que estes também têm dificuldade em perceber como é que os professores de Português o deixaram passar de ano com tantas dificuldades na aplicação da pontuação, embora admitam que o léxico cerrado e diversificado que utilizava o poderá ter beneficiado, pois, na dúvida, os professores terão decidido que mais valia passá-lo de ano e, sobretudo, não o ler... 

3.4.08

«Torna-se líquido o meu corpo ...»

(Numa sala de aula. Diálogo sem rede. Atitude geral: indiferença, primeiro; surpresa, depois. Média de idade: 16 anos)

- Gostas de poesia?

- Uhum!...não sei. Não. Gosto mais de prosa.

- Porquê?

- A prosa é mais literal.

- Mas voltemos à poesia... Para que é que é ela foi criada?

- Pra nos obrigar a lê-la...

- Pensas que era esse o objectivo de Safo no séc. VII antes de Cristo?

- Bem. Talvez não...

- Qual seria a função da poesia nessa época?

- Agora, já não percebo nada... afinal, a poesia era hino, era lamento, era celebração, era alimento... e quando chego aqui fico sem saber se também ela era literal... E se não for literal, então, é o quê?

- A essa pergunta não te posso responder. Vais ter que descobrir a resposta na poesia e, também, na prosa. E, entretanto, vai pensando no comentário jocoso daquele teu colega para quem a poesia é filha do álcool. Para ele, o Poeta só escreveu a Obra porque, quando o Sol abria as janelas do dia, já  tinha bebido dois enérgicos copos de aguardente...