28.10.07

Bucólica


- Ó meu senhor, será que viu por aqui umas vacas? Incrédulo, depois de olhar à direita e à esquerda, repliquei: - Não é frequente ver vacas num parque campismo! No entanto, ainda não refeito, perguntei-lhe: Mas o senhor perdeu as suas vacas?
- Não, as vacas não me interessam; procuro o maioral… E o pobre homem lá deu meia volta, sem, no entanto, poder evitar que eu lhe explicasse que seria pouco provável que as vacas andassem por perto, pois, naquela manhã, os caçadores fizeram uma batida monte abaixo até à rede do parque. Eu bem os vira do lado de lá da rede, armas apontadas e canídeos a farejar…
Mas o homem desinteressara-se completamente da minha explicação e seguiu o seu caminho.
O problema dos caçadores à porta do parque de campismo era meu e não dele: eu acordara bem cedo a pensar que, com tamanho tiroteio, era bem provável que não pudesse mostrar a nascente do Alviela aos meus convidados…
O que me faz pensar que há longos anos tento explicar o que, de facto, ninguém me solicitou. O que me pedem é muito simples: - Será que viu, por aqui ou por ali, umas vacas? E eu conto-lhes a história da domesticação das vacas, do trigo, da colonização, das fartas e das estéreis caçadas… E o meu interlocutor deixa de me ouvir porque, afinal, as vacas não passavam dum pretexto. O que ele procurava era o maioral, a ver se ele lhe pagava um copo…
Se ao menos tivesse adivinhado! Ter-lhe-ia pago uma cerveja e, em troca, ele teria dito: - muito obrigado, meu senhor.
Esta bucólica não respeita nenhum cânone, nem mesmo o da simplicidade. É apenas uma forma de esconder uma enorme vontade de zurzir nuns figurões, uns maiores e outros mais pequenos, que ultimamente têm abusado da paciência da arraia-miúda. Será que os maiorais já não querem saber das vacas?!
Zus! O lugar onde a língua acaba.
/MCG

22.10.07

De que me servem estes papéis?

São tantos os papéis,

todos empilhados

numa serra fútil

(a aliança salta do dedo

num esgar último)

estes papéis são resposta

a uma única pergunta

cansada de fugas inúteis

De que me servem estes papéis?

Já me vejo arder,

o vento ainda sopra a meu favor,

o cântaro avança sôfrego,

mas eu atravesso os meus papéis

já cinza

De que me servem estes papéis?

 

21.10.07

Adeus, Até amanhã

Este documentário de António Escudeiro deixou-me uma estranha emoção. Ao ver aquelas imagens do passado e do presente do Sul de Angola, senti que também eu regressava a lugares familiares. Lugares povoados por brancos que construíram cidades, o pioneiro caminho-de-ferro de Benguela, portos à escala internacional, pesqueiros… Mas o meu regresso é bem diferente do de António Escudeiro: ele nasceu lá, filho de engenheiro que chegou a director do caminho-de-ferro; estudou lá, em escolas, onde predominavam os brancos e os mestiços. Nessa Angola austral, os brancos eram felizes. Hoje, os brancos são raros, o caminho-de-ferro recupera lentamente, as cidades continuam destruídas; apenas as autoridades provinciais recuperaram para si alguns palacetes; os negros, esses, em magotes percorrem todos os caminhos, tentando vender a pouca produção que vão conseguindo.

António escudeiro vê o cinema do Huambo arrombado, as máquinas de projectar espreitando, por detrás de uma parede imorredoura, um horizonte imprevisível, mas ameaçador. E eu, também, percorro aqueles morros, estupefacto com a cegueira branca, que descobri na denúncia feita por Pepetela e, sobretudo, por Ruy Mário de Carvalho. Também eles, brancos-mestiços de Angola. Todos eles brancos de segunda!

E eu que nunca fui a Angola, tenho cada vez mais a sensação que lá vivi sempre. Mesmo, agora, começo a pensar naquele professor de História, de Arlindo Barbeitos, que levou o aluno preferido a visitar o cemitério para lhe ensinar a ler a história do colonialismo. Ao ver entrar António Escudeiro no cemitério, pensei, aqui está um espaço onde a diferença de cor ou de pele não fará sentido. Mas não. Esquecera que só o branco tinha direito àquele intra-muros.

Apesar de tudo, o documentário "Adeus, Até amanhã" merece ser estudado com atenção pelo que deixa ver do que aconteceu nos últimos 30 anos na martirizada Angola e, sobretudo, pela cor dos panos e pelo olhar abismal daqueles milhares de crianças que espreitavam as câmaras e que respondiam em coro, nas despojadas salas de aulas.

Por mais que queiramos esquecer, a Europa é responsável pelo atraso da África…

17.10.07

Aos 53 anos, fragmentos…

São muitos os anos, quando relembro que outrora um médico me assegurou que não chegaria aos 39. Não lhe recordo o rosto nem a voz, esfumou-se numa enfermaria branca como ele.

O dia foi de sinais contraditórios: os amigos não esqueceram a palavra ou o gesto solícito; mas outros (e não sei como classificá-los!) passaram o dia a delimitar o território como se pudessem correr algum perigo. Mas como se o poder nunca me interessou?

Foi, no entanto, um dia de surpresas: o conselho pedagógico mostrou-se participativo e reivindicativo, numa girândola de olhares cruzados e, por vezes, desorientados (pela primeira vez, a mesa teve dois pólos!) Hoje, os meus neurónios desdobraram-se num movimento circular inesperado.

Surpreendentemente, alguém que, por vezes, consegue fazer-me desesperar, na placidez dos dias, ofereceu-me "A Vida Fragmentada – Ensaios sobre a Moral Pós-Moderna", de Zygmunt Bauman.

14.10.07

Sem vergonha…

" Um ministério é um grupo casual de indivíduos, que intrigaram para estar ali." (…) O país "paga e reza."Eça de Queiroz, Maio de 1871

Em Torres Vedras, um grupo mais ou menos casual intriga para conquistar o poder. Em Fátima, a desavergonhada Igreja esbanja o suor do povo e ainda o acusa de grosseria. No Terreiro do Paço, um ministro das finanças corta nas pensões de reforma acima dos 600 euros, como se 700 ou 800 euros fossem suficientes para pagar a alimentação, os cuidados de saúde, os lares…

Quem anda por aí, vê, um pouco por toda parte, sinais de riqueza…. Riqueza cuja origem é desconhecida e, portanto, não tributada.

Será assim tão difícil enviar meia dúzia de polícias a cada marina, a cada imobiliária, a cada banco, a cada discoteca, a cada catedral? Se o fizessem, os agentes perderiam a vontade de passar pelas delegações sindicais ou deixariam de ficar parados em frente dos bancos, das ourivesarias…

(…)

Neste fim-de-semana, dormi mal. Despertei, várias vezes, a pensar no motivo que nos leva, ao olharmos para um monumento, a admirá-lo sem nos preocuparmos com a biografia do arquitecto, se andava triste ou alegre, se bebia ou era abstémio e, ao mesmo tempo, quando lemos um poema ou um romance, a só querer saber se o poeta ou o romancista foram infelizes na infância, pederastas, pobres, provincianos ou cosmopolitas. Que diferença há entre um poema e uma catedral? Entre um Poeta e um Arquitecto? Será uma questão de escala?

Parece-me que este desassossego não abona muito a meu favor. Sobretudo do meu fim-de-semana.

E ainda mais grave: gastei, também, uma boa parte da noite de sábado para domingo, a pensar no papel do conselho pedagógico na escola actual. E fiquei descoroçoado, sem saber qual é o campo de acção deste órgão. Acordei com a ideia que me compete pensar a organização escolar e a actividade docente tendo como único objecto o crescimento harmonioso de todo e qualquer ser que entre na escola, independentemente da fase de aprendizagem em que se encontre. A escola deve preparar o ser para que, no futuro, possa ser um arquitecto, um pedreiro, um poeta, um linguista, um físico, um cozinheiro, um matemático, um pintor… e não, um bêbado, um delinquente, um pederasta, um branco, um negro, um indiano, um fundamentalista…

À escola não interessam os intriguistas que procuram chegar aos ministérios!

11.10.07

Aporias

Tenho evitado comentar os casos do dia: o regresso à escola dos funcionários europeus; o topete dum empregado da RTP, em tempos de "precisa-se colaborador"; a iniciativa auto-formadora de dois agentes da ordem que confundiram uma delegação sindical com uma escola; o desaparecimento da ministra da educação; uma basílica que apenas custou aos crentes 70 milhões de euros; o secretismo das organizações e o cinismo dos dirigentes; a dor de cotovelo de quase todos; e, sobretudo, a indiferença e a descrença da maioria…

Inimigos, marchamos, lado a lado, sobre um campo de minas, sem querer perceber que ainda nos falta aprender a ler. Que ler pode ser uma actividade permanente, a única capaz de nos oferecer uma alternativa à "apagada e vil tristeza" do orgulho, da presunção e da prosápia.

Ler abre-nos a porta da alteridade… e toda a escrita é uma forma de leitura, de epifania…

(Apesar do ruído e do grito, da histeria das confrarias…)

5.10.07

Afonso Vaz Botelho - Que devo eu fazer agora?!

A 1 de Dezembro, a 5 de Outubro e a 25 de Abril, os que ainda têm trabalho param para celebrar a refundação da Nação. Primeiramente, libertámo-nos do estrangeiro, em segundo lugar, pusemos termo ao que restava do Antigo Regime e, finalmente, deixámos ruir o Império, liquidando, no acto, o Estado Novo.

Qualquer destas datas assinala o fim de um ciclo, dando início a outro. E por isso em vez de celebrarmos a libertação – esperança fugaz -, deveríamos reflectir sobre o modo como os portugueses se empenham na revitalização da colectividade. O que é que, de facto, nos interessa?

A resposta? - Podemos encontrá-la no Retrato de Uma Família Portuguesa, de Miguel Rovisco. Perante o perigo, perante o invasor, a família desmorona-se e uma parte foge: para o Brasil ou para a Europa, tanto serve!

Nascido em 1959, Miguel Rovisco suicidou-se em 1987, um ano depois de Portugal ter "entrado" na União Europeia. Aos 27 anos, já escrevera mais de 20 peças… No plano existencial, o seu suicídio não se explica – poderia ser um acto gratuito e repentista de algum existencialista à deriva num universo órfão de Deus! Mas não.

O desespero e a rebeldia de Miguel Rovisco nada tinham a ver com a divindade. A causa primeira encontrou-a na indiferença e no alheamento das elites nacionais, incapazes de compreender a força civilizadora do teatro.

As elites não lêem ou, pior, se o fazem, não resistem à tentação de censurar a obra alheia, desvirtuando-a de tal modo que o autor se verá obrigado a renegá-la. Mas Miguel Rovisco, em vez de desistir ou de renegar a obra, preferiu que um comboio lhe desfizesse o corpo para que a voz se pudesse ouvir bem alto no palco das consciências que nos governam…

Hoje, 5 de Outubro de 2007, que novas razões podem impedir os Roviscos desta Nação de se suicidar?

(Lá bem no alto, sobre os cedros, já avisto 250 altos funcionários da Comissão Europeia que, sem qualquer razão para se imolarem, se preparam para "regressar à escola", prometendo um futuro radioso… Mas, ao contrário do que acontece na maioria dos palcos, apenas teremos direito a um solilóquio…)