13.6.06

Há dias, há noites...

«Há dias, há noites em que as águas se movem lentas na minha memória. Movem-se?» Eugénio de Andrade, Limiar dos Pássaros
I - Hoje, dia de Santo António, não pensei em nenhum arraial, não segui nenhuma liturgia.
Os ritos dizem-me cada vez menos, num mês em que o indivíduo cede o lugar à tribo - da pátria, do futebol, dos santos populares. Junho inicia um ciclo de convite ao lazer, com uma acelerada degradação da produtividade. Sempre que o Estio se aproxima, a economia estiola, apesar da propaganda que defende o turismo como um esteio da nossa economia.
II - Hoje, dia de Eugénio de Andrade e de Álvaro Cunhal, ouvi dizer que deixaram de ser lidos, que os seus biógrafos são mais escutados. Preferimos, de longe, a iconofilia à poética, à ideologia! Não admira: estamos no mês em que o indivíduo cede o lugar à tribo.
III - Hoje, quando passei, os nimbos ameaçavam despenhar-se sobre aquele silêncio de lápides. A tribo, taciturna, ignorava as serpentinas que caíam dos tectos, e seguia vagamente o voo mortífero das moscas...
IV - Amanhã, também é dia: a tribo vai desfilar, mortiça... atenta à iconografia...

11.6.06

A força do acontecimento...

Na minha infância não havia "Plano (projecto) nacional de leitura". A força do acontecimento foi de tal ordem que subitamente o jornal "O Século" entrou lá em casa no dia 4 de Junho de 1963(?) - morrera, no dia 3 de Junho, o santo papa: o papa João XXIII. Emprestado pelo logista da aldeia. Creio que, na primeira página, havia uma fotografia..., mas o que me ficou foi o formato daquele jornal. Mais tarde, já no Liceu de Tomar, à época secção do Liceu de Santarém, passei a comprar o jornal ( O Diário de Lisboa, o Diário Popular, A República, A Capital...), mas curiosamente nunca me senti atraído pelo formato de 'O Século'. Na escola primária, que me lembre, não entravam jornais. No Seminário de Santarém, lembro-me que os padres liam 'A Capital', cuja perigosidade política era reduzida, apesar dos 'fait-divers" poderem perturbar a alma. Havia, isso sim, muitos jornais de teor religioso que não me interessavam mínimamente. Nesse período de reclusão, a força do acontecimento não conseguia perfurar as muralhas que cercavam o antigo Colégio dos Jesuítas. Estavamos protegidos da torpe e imunda maré do mundo exterior!
Na minha infância também não havia Plano (projecto) nacional de escuta radiofónica. Havia a outra, entregue ao cabo da aldeia e, provavelmente, a um dos meus tios que era um polícia muito viajado... Só, em 1966, a rádio irrompeu pelos meus ouvidos... na taberna vizinha da mercearia, onde me deslocara para comprar um kilo de arroz. Subitamente, foi o delírio: a algazarra dos homens despertou-me para as ondas da rádio: José Torres acabara de marcar um golo, no Portugal - Rússia, aquele jovem que, ainda há pouco tempo, descalço,vendia peixe pelas ruas da aldeia. Era como se todos nós tivessemos vencido a Rússia, aquela por quem Nossa Senhora tinha vindo pedir a Fátima - «rezem pela salvação da Rússia», a vermelha, porque a branca fora esmagada pelos bolchevista, ou, então, emigrara, na terceira classe dos navios que José Rodrigues Miguéis tão bem havia de descrever...
Ali, naquela aldeia, os órgãos de comunicação eram postos ao serviço da comunidade como chamariz... Para que o aldeão pudesse comprar um transístor, era necessário que partisse, primeiro, para a França ou para a Alemanha... e, aí novamente sim, num sinal de riqueza, em casa, as ondas da rádio misteriosamente ocupavam todo o silêncio...
Hoje, parece que está em marcha um Plano (projecto) nacional de leitura, de escuta, de escrita... Creio, por isso, que, doravante, nenhuma outra criança poderá voltar a queixar-se de falta de informação, de discriminação...
Sobra-me, todavia, uma dúvida: Terá esse Plano (esse acontecimento) a mesma força que a morte do Santo Papa ou que o golo do José Torres?
Bem sei que não devo ter dúvidas, pois não passo de um «experto» em campo de «cientes»!

10.6.06

Neste campo de Marte...

(Dirigindo-se a D. Sebastião) «Todos favorecei em seu ofícios, Segundo têm das vidas o talento» Camões, Os Lusíadas, X, 150
Tudo leva a crer que D. Sebastião não era mais judicioso que os actuais governantes. Por mais que Pessoa lhe elogie a «loucura», o aventureirismo da sua decisão arrastou-nos para uma crise que jamais superámos. A decisão política ignora o talento e, sobretudo, mata os novos talentos, sujeitando-os a uma uniformização castradora.
Quais soldados num campo de batalha, os professores podem ser substituídos sem que haja qualquer prejuízo para os alunos, como se a aprendizagem não fosse mais do que a assimilação /repetição de uma instrução. Neste campo de Marte, aluno e professor perderam a identidade... são peças obsoletas de uma engrenagem puramente mecânica... sem alma. E onde não há alma, não há talento...
Hoje, dia de Camões, é de uma grande insensatez evocar não só a arte, mas, sobretudo, o engenho do Poeta. Continuamos a fingir que lhe seguimos o ensinamento, enquanto espezinhamos o talento num campo de Marte voltado para a foz do Douro...
(Kafka dirigindo-se a si próprio)
«Estou mais indeciso do que jamais estive, só sinto a violência da vida. E estou estupidamente vazio.» Diários, 19 de Novembro de 1913
A violência da vida, a indecisão, o vazio... o vazio, a indecisão, a violência da vida...
Definitivamente, a vida está a mais! Mas há quanto tempo?
Mas será justo pensar deste modo quando tantos jovens precisam de ajuda para desenvolverem os seus talentos?
Se nos concentrarmos nessa tarefa, não teremos tempo para nos ocuparmos da "loucura" de D. Sebastião, o príncipe que o Poeta pretendia desesperadamente educar: «Tomai conselho só d'experimentados,/Que viram largos anos, largos meses,/Que, posto que em cientes muito cabe,/ Mais em particular o experto sabe.» X, 152.

8.6.06

Ondaka

«Ouvir, ouvimo-la mas agarrá-la é impossível - Ondaka, a palavra ou a voz Provérbio umbundu
Ultimamente, o ruído tem vindo a aumentar. Deixámos de procurar 'Ondaka'. Não parece sequer que a consigamos ouvir, quanto mais prendê-la.
Querem, agora, que a aprendamos maoisticamente, no pré-escolar e no primeiro ciclo, em sessões de 60 minutos de revolução cultural. Um robot lerá por nós estórias de encantar e nós, religiosamente, escutaremos a maviosa voz que se anichará definitivamente no nosso pequeno cérebro.
Naturalmente, desenvolveremos a competência de escuta difusa - aquela em que a voz robótica se deixa interseccionar pelos olhos azuis-verdes que nos fitam do fundo de um galheteiro esquecido no canto da aranha...
(...)
Mais tarde, aconselhar-nos-ão a procurar um psicólogo que nos explique por que motivo nos recusamos a ler e, sobretudo, que nos ajude a vencer aquela dispersão que nos impede de distinguir as vozes.
(...)
Enquanto o ruído continua a aumentar, uma distante e irremediável voz ecoa em nós...

4.6.06

Educação à la carte...

«Eu não sei se há país da Europa, em que a criatura, que sobre o seu destino e o dos outros ousa meditar, sofra tão miseravelmente a angústia de pregar no deserto (quando prega) ou a de sentir que os outros falam outra língua (quando se cala e os ouve).» Jorge de Sena, Meditações Sobre a Lei Seca.
Pensar a educação em termos nacionais não é prioridade do Ministério da Educação. A senhora ministra, talvez por influência do ministro da saúde, prefere gerir o ministério como um hospital repleto de doentes e em que a maioria dos médicos também se encontra doente. Por isso, para cada situação clínica, avança com um diagnóstico, que pode ir do encerramento da unidade de saúde a uma sanção pecuniária - em casos extremos, algum médico amigo mais saudável poderá receber um bónus a definir... Mas o que lhe interessa, é assinar muitos contratos e protocolos com as forças vivas locais e regionais, esperando que essas forças sejam suficientemente sensatas, honestas e desinteressadas, que ponham o interesse nacional acima do interesse particular...
(Como é sabido, há muito que essas forças minam o subsolo nacional, deixando qualquer estrangeiro estupefacto face à impunidade reinante. Em Portugal, a impunidade tornou-se um dado cultural. E não se diga que vivemos no reino da estupidez ou num jardim inefável! Pobre Jorge de Sena!)
Desde 1974 que na escola portuguesa não há liderança porque o Estado não tem uma política educativa clara. Prefere que cada escola faça a sua escolha, deixando que o critério político, oportunista ou de simples caciquismo local ou regional se sobreponha à execução de um projecto educativo nacional. E fá-lo hipocritamente, porque esse laxismo lhe permite não pagar devidamente a quem deveria gerir as escolas.
Sem mudança no modelo de gestão das escolas, não é possível mudar o modelo organizativo. A escola não pode continuar a depender da iniciativa de indivíduos ou de grupos - do amiguismo -necessita de ser pensada globalmente por um conselho de gestão executivo e pedagógico, suficientemente ágil nas decisões, mas a quem possam ser imputadas responsabilidades... E esse órgão deverá ser remunerado, de forma diferenciada, como acontece em qualquer empresa pública ou privada.
Em fundo, ouço a senhora ministra perorar prolixamente sobre aspectos pontuais. Não lhe ouço, no entanto, qualquer palavra sobre um projecto educativo nacional. E esse é o problema nº1 da educação: o país não sabe o que quer; prefere andar à deriva, ao sabor dos impulsos dos assessores - especialistas (atomistas) que nunca dão a cara e são pagos principescamente!

3.6.06

Variante Mbala

Querendo fundar uma nova sociedade 'igualitária', os jovens decidem matar os chefes de linhagem - todos os pais (símbolo: cabeça) e todos os tios (símbolo: perna). Passado pouco tempo, e vendo-se perante um animal monstruoso sem cabeça e sem pernas, os jovens decidem restaurar a autoridade dos velhos.
Na situação actual, nem os jovens parecem querer matar os velhos, desde que estes lhes continuem a alimentar os vícios, nem o animal acéfalo e perneta que nos governa parece disposto a prescindir do seu trabalho..., mesmo que lhes reserve uma prateleira supranumerária no disco rígido do ministério da rapina.
Os velhos são os novos escravos do séc. XXI, irremediavelmente sujeitos ao contrato da mobilidade, e totalmente anatemizados se procurarem viver para além dos 65 anos. Não podendo ser suportados pela família que, entretanto, deixou de ser a célula matricial da sociedade, é lhes pedido um esforço derradeiro: - Em nome dos futuros pensionistas, devem continuar nos seus postos de trabalho até morrer!
Paradoxalmente, a maioria dos futuros pensionistas - os jovens, pelo menos, até aos 35 anos de idade - continua desempregada sem mostrar qualquer vontade de eliminar os chefes de linhagem.
Muitos daqueles jovens que entraram na vida activa em 1973-74-75, começaram por colocar a sua juventude ao serviço de um Ideal 'igualitário', suportaram todas as arbitrariedades de preclaras luminárias, para agora estas lhes dizerem: - Sois um fardo que a nação só pode suportar se continuardes a trabalhar, de preferência, até morrer.
Entretanto, os jovens de hoje continuam uma vida virtual, comportando-se como os negreiros...

1.6.06

Um país sem alma!

«Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.» Álvaro de Campos, Ode Triunfal
O Governo em geral (o M.E., em particular) em vez de combater os factores que contribuem para o insucesso do sistema educativo, decidiu encabeçar uma cruzada contra os professores, responsabilizando-os pela insolvência do Estado. Quer, agora, reduzir a massa salarial global dispendida com os professores, aumentando aqueles que se encontram no início de carreira ( gesto hipócrita de quem não se propõe contratar novos professores!) e aumentando, também, os quadros superiores da Administração Pública ( o que esconde um efectivo aumento das medíocres hostes partidárias que ocupam todos os lugares de relevo - da Assembleia da República aos Ministérios, passando por todas as correias de transmissão...). Quanto aos restantes professores, reformula-lhes as carreiras de modo a que progressão seja mais lenta, isto é, reservando os lugares do topo, certamente melhor remunerados, para aqueles que se disponham a servir, não o Estado, mas os partidos (talvez, se pudesse, aqui, falar em castas!) que controlam a vida política.
O que está em causa não é a reforma da educação, não é a formação dos jovens de modo a que se possam integrar cedo na vida activa, contribuindo para o rejuvenesciento laboral, não é ajudar os professores a alterarem os seus métodos de trabalhar e, também, não é, ao contrário do que se veicula através das televisões, dar mais intervenção aos encarregados de educação na avaliação do trabalho realizado pelos professores. O que se esconde é a decisão de distribuir a riqueza, nacional ou europeia, por todos aqueles que zelosamente suportam o poder. É a partilha da pimenta, do ouro, do açucar, da borracha, dos diamantes, do petróleo, das remessas dos emigrantes, dos fundos europeus, dos subsídios, dos impostos... IVA, IRS, IRC...
É o salve-se quem puder num país que nunca conseguiu, por si, equilibrar o deve e o haver, e que não querendo (ou não podendo?) mudar de rumo, decide tudo fazer para desacreditar os seus funcionários...
Um país sem alma!
( Delírio)
E não vale pena dizer que vendemos a alma ao Diabo. Porque o Diabo é muito mais inteligente do que aqueles que, despuradamente, nos insultam e nos envergonham. É vê-los nos estádios, nas praças, nas televisões... sempre a trabalhar pela nação!
O que vinha a calhar era uma invasão estrangeira! Talvez os galheteiros fossem definitivamente corridos...
Post scriptum: Não sei se posso continuar por muito mais tempo contra-a-corrente. Já começo a sentir-me excedentário!