19.11.14

Nem sempre vemos as fontes...

Para o caso de haver quem acredite na originalidade e não compreenda o que é a intertextualidade, vou citar Gonçallo Anes, de alcunha o Bandarra, que terá vivido na primeira metade do século XVI, no reinado de D. João III, o qual, entre 1530 e 1540, compôs um conjunto de trovas sobre a decadência dos costumes e os futuros destinos de Portugal.*

(...)
Forte nome he Portugal,
Um nome tão excellente,
He Rei de cabo poente,
Sobre todos principal.
Não se acha vosso igual
Rei de tal merecimento:
Não se acha, segun sento,
Do Poento ao Oriental.

Portugal he nome inteiro,
Nome de macho, se queres:
Os outros Reinos mulheres,
Como ferro sem azeiro;
E senão olha primeiro,
Portugal tem a fronteira,
Todos mudão a carreira
Com medo do seu rafeiro.

Portugal tem a bandeira
Com cinco Quinas no meio,
E segundo vejo, e creio,
Este he a cabeceira
E porá a sua cimeira,
Que em Calvário lhe foi dada,
E será Rei da manada
Que vem de longa carreira.

Este Rei tem tal nobreza,
Qual eu nunca vi em Rei:
Este guarda bem a lei
Da justiça, e da grandeza
Senhorea Sua Alteza
Todos os portos, e viagens,
Porque he Rei das passagens
Do Mar, e sua riqueza.

Este Rei tão excellente,
De quem tomei minha teima,
Não he de casta Goleima,
Mas de Reis primo, e parente.
Vem de mui alta semente
De todos quatro costados,
Todos Reis de primos grados
De Levante até ao Poente.

Serão os Reis concorrentes,
Quatro serão, e não mais;
Todos quatro principaes
Do Levante ao Poente. 
Os outros Reis mui contentes
De o verem Imperador,
E havido por Senhor
Não por davidas, nem presentes.

Comendadores, Prelados,
Que as Igrejas comeis,
Traçareis, e volvereis
Por honra dos Tres Estados.
E os mais serão taxados;
Todos contribuirão
E haverá grande confusão
Em toda a sorte de estados.

Já o Leão he experto
Mui alerto,
Já acordou, anda caminho,
Tirará cedo do ninho
O porco, e he mui certo,
Fugirá para o deserto,
Do Leão, e seu bramido,
Demonstra que vai ferido
Desse bom Rei Encuberto.
(...)

Para o caso de haver quem acredite na originalidade de Camões e de Pessoa, vale a pena  olhar à volta e, sobretudo, não desprezar a tradição. Nem sempre as fontes estão à vista ou, melhor, nem sempre vemos as fontes porque porque vivemos de olhos fechados...

* Consultar: António Machado Pires, D. Sebastião e O Encoberto, Fundação Calouste Gulbenkian.

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