4.3.09

Crónica de António Souto

EX ABRUPTO

Bosquejos

Carnaval. Regressou uma vez mais em grande! Aliás, o carnaval nem sequer regressou, o carnaval há muito que está, deixa-se ficar ao longo dos meses, do ano, dos anos, disfarçado, mascarado como é seu timbre. Fazem-se algumas remodelações de corsos, apresentam-se novos temas mais consentâneos com a actualidade sócio-política, ajustam-se os trajes e a figuração ao modelo inimitável da terra de santa cruz. Mas carnaval é sempre carnaval. Comandam as tropelias. Ora um magalhães descarado vulgarizando pornografia e logo suspenso de um desfile atrevido, para logo ser diligentemente restituído à folia, ora cinco exemplares de um livro desavergonhado ostentando pornocracia de arte e logo retirados de uma banca livresca, para logo serem devolvidos à erudição. Trejeitos carnavalescos que ninguém parece levar a mal, tudo reinação. O carnaval está, para durar.

Uma anódina peça de jornal. Como um fait divers. Lê-se que uma criança com uma doença rara, entre nós e no mundo, tendo apenas dez anos aparenta os setenta, envelhece a um ritmo alucinantemente doentio a cada instante. Aparenta, que é como quem diz, vemos nós por fora e vive a criança por dentro. Infelizmente, para a medicina hodierna não existe ainda cura, não haverá, portanto, qualquer resposta de esperança para quantos sofrem desta doença.

Chama-se Cláudia. É a única menina portuguesa com esta doença. Ainda está viva. Há quem entenda que é uma criança normal. Talvez seja, ou pelo menos deveria ser considerada assim mesmo, NORMAL, e por isso mesmo com direito a todos os direitos que qualquer pessoa normal tem. Mas não é o caso. Ser normal, neste caso, serve apenas para evitar que a Cláudia tenha, de facto, direito a ter direitos. O tratamento é caro e contínuo, exige deslocações ao estrangeiro. A mãe, para cuidar dela e a acompanhar, deixou o emprego. Tem o rendimento social de inserção. A filha, um subsídio de cerca de cem euros. Tudo somado, manifestamente insuficiente. Vai-lhes valendo o apoio de um instituto americano.

Quando sabemos que "uma criança com progeria [síndrome de Hutchinson-Gilford] tem uma expectativa média de vida de 14 anos para as meninas e 16 para os meninos", isto revolta-nos. As doenças raras, quase todas incuráveis e de terapia onerosa, mereciam neste século vinte e um uma atenção especial por parte da sociedade e do estado. É verdade que nos últimos anos muito se tem feito no sector social, mas há falhas inaceitáveis.

Ontem, no encerramento do congresso do PS (partido cujo governo mais tem feito neste domínio), fiquei preocupado e triste por não ouvir, na apresentação das políticas sociais para os próximos dois anos, uma palavra sequer sobre a deficiência. Ouvi com agrado novidades sobre o alargamento obrigatório do pré-escolar, sobre o alargamento do ensino a doze anos de escolaridade, sobre uma bolsa de estudos para famílias carenciadas, mas nada, nada sobre os milhares de doentes crónicos e deficientes dependentes. E a deficiência, silenciosa e pouco reivindicativa, é um problema social urgente, que não carece de debates públicos ou de referendos, não é um fait divers.

Ontem, domingo, foi assassinado o chefe do estado-maior da Guiné-Bissau. Hoje, segunda-feira, foi assassinado o presidente da Guiné-Bissau. Há quem fale em retaliação. Na Guiné-Bissau mata-se e morre-se por razões diversas. Há dois dias atrás, numa reportagem de Catarina Furtado, ficámos a saber como a morte é ditada à nascença na Guiné-Bissau. Nascer é uma autêntica aventura, ou melhor, vingar é um verdadeiro desafio. As mulheres têm em média seis ou sete filhos para poderem contar, no final, com um ou dois. A descendência assegura-se por tentativas. Às vezes, muitas vezes, nem os filhos nem as próprias mães vencem o parto. A esperança de vida, para as mulheres, está nos cinquenta e seis anos. Morre-se cedo. Na Guiné-Bissau, como em muitos outros sítios do planeta, a maternidade não é o início da esperança, mas um final anunciado. Na Guiné-Bissau, pelos vistos, não basta morrer, há quem insista e persista em matar. Na Guiné-Bissau a morte que nos chega parece ser mais penetrante, parece doer mais, porventura porque dói em português.

António José Souto Marques

Agualva (Sintra), Fevereiro de 2009

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