1.7.06

Quem não embandeira não petisca...

Ultimamente, as aparas vêm-se avolumando: as boas classificações seja dos exames de Português seja da selecção nacional de futebol escondem os habilidosos que manipulam o sucesso e o nacionalismo serôdio. Bebe-se e grita-se numa linguagem reles contra adversários que deveriam merecer o nosso respeito.
Num tempo em que os habilidosos da política ameaçam correr à pedrada quem lhes contrarie os interesses, e em que outros mecenas autárquicos compram o silêncio dos subsidiados, a encenação da saída do ministro dos negócios estrangeiros, precisamente no momento em que o chauvinismo dos portugueses vive do futebol, é aplaudida como uma jogada de mestre Sócrates.
Cada vez mais a esperteza dos ardilosos, também chamada dos guerreiros, se afirma impunemente como um traço fundamental da cultura portuguesa.
Na escola, no futebol, na política, o truque compensa.
E o que mais arrepia é ver como a juventude tumultuosa está a ser educada no ardil e na baixeza.
( Este comentário agreste não visa retirar mérito a todos aqueles que na respectiva actividade dão sempre o seu melhor sem necessitar de embandeirar. Hoje, mais do nunca, quem não embandeira não petisca!)

1 comentário:

  1. Gosto do verbo embandeirar, sobretudo no gerúndio, pela harmonia do dizer e do ouvir, como pela força semiótica que o momento presente lhe confere. Pois assim mesmo é que é: finge-se que se é, não sendo; que se está, não estando; que se não diz, dizendo; que se não ouve, ouvindo. Finge-se. Sempre! Ainda antes das férias, mui diplomaticamente!, se dará conta da queda, havendo espaço para ela, a queda, que é cada vez mais diminuto, o espaço, como tudo o mais...
    Entretanto, e troca por troca, uma crónica de meados de Junho. Como por acaso, ou talvez não!


    EX ABRUPTO

    Vamos todos à bola


    A actualidade exigia que escrevêssemos sobre futebol. Afinal, todos falam de futebol, todos comentam futebol, todos dão palpites sobre futebol. Dir-se-ia que o futebol palpita dentro de todos, no lugar do coração; dir-se-ia, como já disse alguém, que no lugar da cabeça há agora uma bola, umas vezes redonda, outras quadrada, mas uma cabeça-bola, toda verde, amarela e vermelha, jorrando toda pelos olhos, pelos ouvidos e pela boca um patriotismo bairrista ou um bairrismo patrioteiro. E a bandeira vende-se e compra-se e dá-se e recebe-se, e pinta-se na barriga e nos braços e nas faces e na cara da bola-cabeça, e esculpe-se na cabeça-bola. E todos entoam o hino, com letra ou sem ela, que o importante é a música, mais a que se dá do que a que se toma, e todos vão à bola cantando e rindo, mesmo quando não vão, e todos são felizes, que enquanto a bola vai e vem folgam as costas.
    A actualidade exigia que escrevêssemos sobre futebol. Afinal, para além de futebol, que matéria mais relevante pode haver nesta época estival? As rádios emitem futebol, os jornais imprimem futebol, as televisões exibem futebol, tudo transpira futebol, e o resto, não é mais do que isso, apenas resto. Ninguém ouve mais nada, ninguém lê mais nada, ninguém vê mais nada, porque nada mais há para ver, nem para ler, nem para ouvir. O futebol invadiu as cidades, as aldeias, as ruas, as casas, a gente das casas e a cabeça da gente. O futebol invadiu já tudo e todos numa torrente transbordante de vitórias por haver. E este é o assunto, assunto sério que move todos e a todos comove, alimenta e sacia.
    A actualidade exigia que escrevêssemos sobre futebol. Afinal, neste mundial global não há misérias nem fomes, não há deslocalizações nem desempregos, não há dificuldades nem défices, não há ganâncias nem sobreendividamentos, não há insucessos nem abandonos. Este é um campeonato de paz, um campeonato de harmonia, um campeonato de ambição e de grandezas. O que agora há é auto-estimas, é heróis, é ídolos, e fintas, livres, penaltys e golos, ronaldos, figos e figas, que é tudo questão de jogo de sorte e azar.
    A actualidade exigia que escrevêssemos sobre futebol. Afinal, a festa é de união e de solidariedade, de couratos e de sardinha na brasa, de cerveja e de vinho tinto, de cornetas, tambores e bombos, e de suor, que a temporada é de festa e é de febre, quase delírio. A festa é de arraial. Leva-se um Buda à Alemanha, Nossa Senhora de Fátima não se importará, e o regresso, com a fervorosa fé do triunfo, far-se-á a pé, promessas são promessas e o esférico move montanhas.
    A actualidade exigia que escrevêssemos sobre futebol. A actualidade exigia que escrevêssemos. A actualidade exigia, pelo menos, uma palavra, uma palavra com tino, uma palavra, afinal, uma só que fosse, mas com cabeça no lugar da cabeça.

    António José Souto Marques
    Agualva (Sintra), Junho de 2006

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