7.4.17

Como escrevi ontem

Como escrevi ontem, o inferno está em nós. 
Os sintomas são cada vez mais evidentes. De nada serve querer matar os demónios alheios se, a cada passo, geramos o mal...
As instituições não conseguem reger-se por valores universais. Preferem o relativismo axiológico e as inerentes fronteiras, sempre mais musculadas...
Cerram-se as portas, reforçam-se as janelas, criam-se sucessivos perímetros de segurança e até a própria terra vive cercada por milhares de satélites de espionagem. 
A pegada de cada um repete-se milhares de vezes ao dia, pondo definitivamente termo à vida privada.
Em cada círculo que se abre, acantonam-se as castas, esperando que elas não rompam as barreiras. E se o fazem, metralham-se ruidosamente ou gaseiam-se no silêncio das horas...

6.4.17

O Inferno não mora ao lado

C'est marrant la jeunesse, pensa Mathieu, au-dehors ça rutile et au-dedans on ne sent rien.  Quem o escreveu foi Jean-Paul Sartre, em L'âge de raison / Les chemins de la Liberté, 1945.

A ideia parece-me um pouco obscura, a começar pela oposição entre o brilho exterior e o vazio interior. Não sei se a distinção ainda faz sentido, porque aquilo que vou observando é a multiplicação de figuras dúbias, mentalmente formatadas por encenadores cujo único interesse é o capital. 
Claro que as réplicas ainda acreditam que têm sentimentos e, sobretudo, que têm o direito de desocultar aquilo que pensam ser a sua singularidade. E fazem-no umas vezes sem pudor, outras lamuriando-se por não ser compreendidas ou mesmo por serem reprimidas. 
Como Sartre proclamou noutro lugar e a outro propósito: - L'enfer ce sont les autres!
Creio, contudo, que o Inferno não mora ao lado...

O que aqui registo mais não é do que a expressão da minha surpresa perante a morte daquilo que outrora era designado como "a intimidade" e que, como tal, não procurava a exposição pública.

5.4.17

Não tenho nada a dizer

Perguntado se tinha alguma coisa a dizer sobre o rendimento e o comportamento..., respondi automaticamente: - "Não tenho nada a dizer..."
Eu próprio me surpreendi. Ao fim de 42 anos, deixei de ditar para a ata uma série de lugares-comuns que, de facto, nada acrescentam... Trata-se dum ritual revelador do imobilismo em que caímos.
O que temos tombado nas atas de pouco serve, até porque elas se tornaram depósito de burocracia confinada a meia dúzia de tópicos, em que os contactos com os pais e os encarregados de educação predominam, isto é, atos que deveriam ser matéria de outras atas...
É um pouco como nos mass media, as notícias já não registam acontecimentos, são apenas repetições e encenações decalcadas de uma matriz industrial...
E depois há essa evidência absurda, num tempo de enorme evolução tecnológica, mais não fazemos do que confirmar atos pretéritos... e assim ocupamos o tempo, com a sensação de que ele nos faz falta, mas já não sabemos para quê.
Cumprimos uma inevitabilidade improdutiva.
Para quem se arrepia com a referência às reformas estruturais, aqui fica o registo de que na Escola (Educação / Ensino / Formação) há uma reforma estrutural por fazer.

4.4.17

Talvez haja uma explicação

Podia expor, aqui, situações de perspicácia, de matreirice, de zelo, de inibição, até de lucidez... Contudo, só uma situação de ansiedade permanece. Uma ânsia de natureza milagrosa, inútil, a meu ver, pois os milagres não conseguem abrir brecha na minha racionalidade...
Talvez haja a uma explicação, um pouco protestante, para esta minha resistência - não terei recebido a graça divina, o que quer dizer que não sou eu que passo ao lado da divindade, é ela que não quer nada comigo...
Da sarça eleva-se uma contradição já um pouco fria, mas, na verdade, eu até considero a ansiedade estimulante, desde que ela não me esgote as forças e me faça superar as horas da desgraça...
O dia de hoje fica marcado por essa ansiedade positiva que, penso, se irá manter nos próximos dias por mais carregados que eles se afigurem. 

Há, todavia, situações para as quais não há explicação: não saber interpretar exames clínicos, usar canadianas para fugir a certas obrigações, desconversar, ou mesmo "distrair-se" para escapar à exposição pública... sem esquecer o político que diz não saber o que são 'reformas estruturais'...

3.4.17

A jovem professora

Com o tempo, abandonou a cabeceira da mesa. Senta-se agora de frente para o espaço que se alarga e revela não só a porta de entrada (de saída), mas também a sala do fundo. O movimento aumenta nos intervalos e as conversas, por vezes, intensificam-se ao ponto de se confundirem numa algaraviada feminina estonteante...
As mãos pequenas e nodosas imobilizam-se longe dos ponteiros do relógio e os olhos perscrutam os pequenos gestos até que, de súbito, a jovem professora, ao folhear o boletim Confluências (2ª série /janeiro-março 2017), apercebe-se que, a seu lado, se encontra o autor mencionado na pág. 3.
Será aquele um primeiro livro? Haverá outros? 
O autor, de pé, à cabeceira da mesa, lá vai acrescentando que sim, que há outros, de poesia... Entretanto, talvez, devido ao renome da escola em que foi colocada recentemente, a jovem professora aproveita para interpelar o colega sentado à sua frente, querendo saber se este também já publicou algum livrinho.
Azar o dela, as mãos pequenas e nodosas foram sempre demasiado canhestras...  

2.4.17

A angústia

A angústia é um estado físico e mental que asfixia o corpo e desorienta o espírito. 
Para os existencialistas, a angústia era um sentimento iniciático que abria o horizonte para a revelação do homem em si. Provavelmente, esta ideia é uma extrapolação forçada de alguém a contas com o absurdo da existência de um Deus alheado do terror humano.
Na perspetiva existencialista, o lá-fora era de tal modo horrível que se tornara impensável aceitar que o ser pudesse pré-existir antes de cada indivíduo e, sobretudo, que a essência fosse capaz de explicar a efemeridade da vida... 
Apesar de tudo, a angústia lidava com a expectativa de uma duração razoável - o terror da morte era ainda um tema exótico...
Hoje, a angústia consome o momento e cresce demolidora.

1.4.17

Liquidação da identidade

Que o Fado é uma boa desculpa para tudo o que (não) acontece, não tenho dúvida. Que o Futebol preenche a vida de uma boa parte dos portugueses, também não duvido. Que Fátima continua viva como refrigério para umas centenas de milhares de portugueses, é inquestionável...

Não tenho dúvida, mas não sei por que motivo. Não creio que seja apenas uma questão de atavismo. Provavelmente estamos já na fase da liquidação da identidade: primeiro, o território; depois, as empresas; finalmente, nós... 

Bem sei que há quem defenda que a nossa identidade, embora obsoleta, se resume ao Fado, ao Futebol e a Fátima, mas não me conformo.