6.4.15

Fantasia literária

«a burro velho dê-se-lhe uma pouca de palha velha / e uma pouca de água turva / e como fica jovem de repente durante cinco minutos!» Herberto Helder, A MORTE SEM MESTRE, 2013

Não me parece que o burro recupere a juventude assim tão facilmente! Ainda se se lhe  desse uma medida de favas ou de cevada... 
A palha velha e a água turva é que o levam ao desfalecimento.

Em tempo de deslumbramento, andam à solta tantos burros que me apetece servir-lhes uma fava rica, a ver se se deixam de disparates...
Diz o provérbio que a sabedoria humana tem limites; a burrice, por sua vez, é infinita.



5.4.15

A palavra 'ressurreição'

«Posso mudar a arquitectura de uma palavra. / Fazer explodir o descido coração das coisas./ Posso meter um nome na intimidade de uma coisa / e recomeçar o talento de existir.» Herberto Helder, Poemacto, IV, 1961

Posso escrever aqui a palavra 'ressurreição', observá-la de perto, imaginar-lhe o movimento e a sombra em transformação. Posso confirmar que, em 1961, me era mais fácil aceitá-la como expressão de uma evidência por questionar, mas nunca me passou pela cabeça, virá-la do avesso, amputá-la do coração... A palavra 'ressurreição' entrou-me em casa, sem atravessar qualquer rio tejo, nem sob a forma de uma qualquer barca que atravessasse o mundo...
A palavra 'ressurreição', cercada de palma e de ramos de oliveira, com chagas onde os meus dedos se recusaram penetrar, existe excessivamente no meu calendário...
Para mim, a palavra 'ressurreição' não tem essa seiva regeneradora em que o Poeta parece acreditar...  

4.4.15

A Sammy caiu do telhado

A Sammy caiu do telhado. Dizem que foi o vento que a empurrou... Na calçada sangrava abundantemente, sem se saber a extensão das lesões. Os samaritanos levaram-na para o hospital mais próximo onde, depois de analisada e anestesiada, foi operada a uma pata..., sem esquecer a boca maltratada...
Entretanto, convalescente, foi levada para casa onde impacientemente espera que a libertem da tala metálica e, sobretudo, do colar de freira que lhe aumenta a fome e a sede...

A Sammy consta que já é figurante no filme do Márcio Laranjeira, Uma Rapariga da Sua Idade"... Quem quiser conhecer a Sammy não deve faltar à apresentação deste filme, na Culturgest, no dia 29 de abril, às 21h30...

Por este andar, a Sammy ainda vira protagonista!

Estou de plantão!

Estou de plantão!
Noutros tempos, castrenses, também comecei por ficar de plantão.
Noutros sonhos, mais antigos, via-me-me de plantão a uma sineta... uma fantasia com cor real!
E tempo houve, de infância, que fiquei de plantão a um berço, não fossem as cobras asfixiar a criança.. Esse foi um tempo em que as camisas do milho desataram a arder, os cântaros se esvaziaram, sobraram marcas por apagar...

Hoje, continuo de plantão! Um tempo em que nunca sei o que vai acontecer. 
Posso caminhar na rua, ir às compras, pagar todo o tipo de contas, ouvir o que todos têm a dizer-me, porque sabem o que dizer, embora eu já não saiba o que responder...  Posso ler o Poema Contínuo, de Herberto Helder, só não posso partir violenta e violentamente para o campo...

E faz-me falta!
Basta-me colocar os pés sobre o mato, olhar a encosta e depois observar a faina das abelhas, ouvir o chilrear dos pássaros. Ficar ali de plantão durante 10 minutos...

3.4.15

Uma comparação absurda do ministro José Branco

Quando confrontado com a morte de Silva Lopes, José Pedro Aguiar Branco afirmou que «Silva Lopes teve a felicidade de partilhar este momento com Manoel Oliveira» e destacou o economista como figura de relevo na política e economia do país.

Este ministro é um homem que cada vez que abre a boca mais valia que estivesse calado. Por um lado, José P. A. Branco vê na morte um momento de felicidade. Por outro lado, faz uma daquelas comparações absurdas que nem os meninos de coro se atreveriam a fazer...

Se a morte é um momento de felicidade e, já agora, de partilha, este ministro bem poderia aproveitá-lo.

2.4.15

Não a morte, mas o falecimento de Manoel de Oliveira

A duração e a extensão são frequentemente alimento deste blogue. E como tal, seria indesculpável que aqui não assinalasse não a morte, mas o falecimento de Manoel de Oliveira, aos 106 anos de idade.
Habituei-me a encarar a sua obra como a expressão do retardamento da passagem do tempo. Tudo era calculado de modo a evitar o inebriamento futurista.
Sempre que penso em Manoel de Oliveira, recordo a leitura das obras de Agustina Bessa-Luís, em que a suspensão do tempo é uma inevitabilidade.
É um pouco como se quem ama a vida se recusasse a avançar!

1.4.15

O único dia em que sou candidato

Poderia enumerar as tarefas executadas e as que estão em lista de espera, poderia enumerar os aborrecimentos e os desgostos, poderia enumerar as fraquezas e os medos, mas para quê? Se alguém prestasse atenção à enumeração, diria que está incompleta ou que peca por excesso. Ou nem isso, talvez se limitasse a proclamar que não passo de "um queixinhas". 
Não passamos de "uns  queixinhas"!

No dia das mentiras, talvez não seja descabido confessar que, ao fim de mais de quarenta anos nas salas de aula, o melhor seria candidatar-me a deputado, porque, segundo Catarina Madeira e Márcia Galrão*, o que há de mais parecido com o comportamento dos deputados no parlamento é a traquinice dos alunos na sala de aula... E convém não esquecer que ainda há por lá uma campainha estridente, ao contrário do que acontece na escola secundária de Camões, em que a campainha apenas se faz notar nos dias de exames....
Parece até que na Assembleia da República há queixinhas famosos...  

* Estes Políticos devem estar Loucos, a esfera dos livros.