31.1.14

Na hora do Meco

Desde o princípio do mundo que me insultam e me caluniam. Os mesmos poetas ― por natureza meus amigos ― que me defendem, me não têm defendido bem. Um ― um inglês chamado Milton ― fez-me perder, com parceiros meus, uma batalha indefinida que nunca se travou. Outro ― um alemão chamado Goethe ― deu-me um papel de alcoviteiro numa tragédia de aldeia. Mas eu não sou o que pensam. As Igrejas abominam-me. Os crentes tremem do meu nome. Mas tenho, quer queiram quer não, um papel no mundo. Nem sou o revoltado contra Deus, nem o espírito que nega. Sou o Deus da Imaginação, perdido porque não crio. É por mim que, quando criança, sonhaste aqueles sonhos que são brinquedos; é por mim que, quando mulher já, tiveste a abraçar-te de noite os príncipes e os dominadores que dormem no fundo desses sonhos. Sou o Espírito que cria sem criar, cuja voz é um fumo, e cuja alma é um erro. Deus criou-me para que eu o imitasse de noite. Ele é o Sol, eu sou a Lua. Minha luz paira sobre tudo quanto é fútil ou findo, fogo-fátuo, margens de rio, pântanos e sombras. Fernando Pessoa, A Hora do Diabo.

No Meco, com praxes ou sem praxes,
a hora era lunar!
a hora era do sonho!
a hora era da brincadeira!
a hora era da imaginação!
De uma imaginação que não cria... e o Diabo foi Deus na onda que pôs termo à vida...
Mesmo assim preferimos o abraço da noite...

30.1.14

Distorção

I - Às 7h00, a TSF notícia que, segundo o MEC, em 2012, os episódios de violência diminuíram nas escolas.
II - Às 7h30, a TSF notícia que, segundo o MEC, 94% das escolas não registaram  na plataforma digital os episódios de violência.

III - Às 13h30, leio uma resposta do MEC a um pedido de esclarecimento e concluo que fiquei ainda mais confuso. Fiquei, no entanto, com vontade de solicitar novo esclarecimento: - Quando é que termina o ciclo avaliativo de um docente que em 1999 chegou ao décimo escalão e, hoje, se encontra no nono? Se um ciclo avaliativo durar quatro anos, quantos são necessários para o perfazer em tempo de congelamento indefinido da progressão na carreira? Quando é que o ciclo avaliativo termina para que o docente possa ser avaliado e, por exemplo, requerer recuperação de avaliação obtida em ciclo avaliativo anterior?

IV - Às 14h30, na Almirante Reis, uma negra com a mão esquerda entrapada arranca parte do trapo sujo para limpar as costas ensanguentadas da mão direita em carne viva. Parado pelo vermelho do semáforo, nem quero acreditar no que observo. Entretanto, uma branca aproxima-se, abre a mala de mão, retira uns lenços de papel  e começa a limpar-lhe as feridas... a negra sorri e eu arranco, um pouco mais calmo...

V - Às 16h00, entro no consultório da médica de família. Ela mede-me a tensão e exclama "Isto não pode continuar assim!" e parte a buscar um comprimido milagroso. 

O problema é que, no meu caso, ninguém sabe quanto dura o efeito da pílula miraculosa!  

29.1.14

Há uma história por contar...

Há uma história por contar em Portugal: a da génese e da expansão do ensino superior privado em Portugal. Quem acompanhou alguns dos empreendedores sabe que a maioria, cedo, viu na educação superior uma oportunidade de negócio. 
Por "cedo" entenda-se início dos anos 70 e, sobretudo,  pós-25 de abril, pois muitos dos regressados, professores universitários ou  funcionários do aparelho colonial, perceberam, ao chegar à metrópole, que o ensino superior público era incapaz de satisfazer a procura...
Muitos dos criadores das sucessivas cooperativas de ensino superior, sempre resultantes de cisões, não tinham o adequado perfil académico para instruir uma nova geração proveniente das franjas sociais, até à data, impedidas de entrar na universidade. 
No entanto, isso não os coibiu de procurar na academia ou, em particular, entre os saneados pelo PREC quem lhes assegurasse o número mínimo de doutores exigido para que o desejado alvará fosse concedido.
Os doutores contratados eram apresentados como coordenadores dos múltiplos departamentos e o Ministério da Educação, ocupado por compadres, também eles, provenientes das ex-colónias ou de gabinetes de estudo, entretanto, extintos, legalizava universidades, extensões universitárias, escolas pré-universitárias, institutos...
A contratação de docentes obedecia a critérios supostamente democráticos: em primeiro lugar, cooperantes e familiares; em segundo lugar, doutores politicamente ostracizados; em terceiro lugar, conselheiros  e outros jubilados de renome; em quarto lugar, políticos de todos os quadrantes, da extrema direita à extrema esquerda... neste caso, uma simples licenciatura era suficiente para entrar na categoria de professor auxiliar; em quinto lugar, alguns docentes do ensino secundário para "alfabetizar" alunos que "dificilmente" obtinham a nota mínima que lhes franqueava a entrada no mundo das praxes civilizadoras...
Com a passagem do tempo, os licenciados subiam a mestres (os mais afoitos a doutores por Salamanca!)... e a porta ia-se escancarando para que alcançassem o almejado patamar de doutores, com equivalência ou sem ela... 
Quanta investigação, quanta ciência, quanta obra!

Por tudo isto, não surpreende que haja licenciados que raramente puseram os pés numa sala de aula. 
Por tudo isto, não surpreende que haja doutores que sempre tiveram os pés à porta da sala de aula, mas que confundem as praxes com brincadeiras de crianças.

PS. De tudo isto não decorre que nestas instituições não haja, ou não tenha havido, alunos, funcionários e professores que cumprem zelosamente a respetiva missão, apesar da rede de cumplicidades e de promiscuidades que paulatinamente geram uma cultura de corrupção e de idiotia.  

28.1.14

Desabafo

Todos os dias alguém me recomenda que vá ao médico. Outros dizem-me que isso não é nada, pois estamos todos doentes...
Só que nem uns nem outros se preocupam em reduzir as causas do stress que me deixa à beira da implosão! Há mesmo aqueles que me estendem o tapete... Fazem-no como se eu fosse portador de um crime antigo!
Que eu saiba nunca roubei nada a ninguém... 
Por estes dias, o mais que posso fazer é ouvir... se não falarem todos ao mesmo tempo. 
Os meus argumentos esgotaram-se!

27.1.14

Meu Portugal, Minha Terra

Há pouco tempo, reencontrei a Selecta de Língua e História Pátria - Meu Portugal, Minha Terra, de Beatriz Mendes Paula e Maria Nobre Gouveia.
O meu exemplar traz o nº 26427, autenticado pelo Ministério da Educação Nacional, com a classificação LIVRO ÚNICO. «Aprovado oficialmente como livro único - Diário do Governo nº 46 - 2ª série, de 24 de Fevereiro de 1965.
Por esta Selecta estudei (?) no 2º Ano do 1º ciclo dos liceus. Interrogo-me se estudei pois a selecta está de perfeita saúde, com parcas anotações, cuidadosamente redigidas. Nela também se encontra o meu número de ordem: 252. Este número perseguia-me para todo lado...
A simples observação do Índice dá-nos conta da criteriosa escolha de autores e respetivos textos, e sobretudo, da adequação à época vivida: António Botto (3), Maurício de Queirós (2), Mário Domingues (4), Tomás Vieira da Cruz, Maria Archer (2), M. Angelina (2), Raul Brandão (4), J. de Vilhena Barbosa, Mário Mota, Gastão de Sousa Dias, Eça de Queirós (3), Maurício de Queirós, A. Fontes Machado, A. Campos Júnior, Sophia de Mello Breyner Andresen (2), Fernando Pessoa (2), Aquilino Ribeiro (6), Fernando Pamplona (2), Ramiro Guedes de Campos, A. Simões Muller (5), A. Correia de Oliveira (3), Luís Reis Santos, Luís de Oliveira Guimarães (2), Conde de Monsaraz, Conde de Sabugosa (3), Sebastião da Gama (2),  P.e Moreira das Neves (2), Martins Fontes, João de Deus (2), Orlando de Albuquerque, Vitorino Nemésio, Nuno de Montemor, António Giraldes, Cecília Meireles (2), Trindade Coelho (2), Júlio César Machado, Gomes Leal, Cardeal Saraiva, Maria Madalena Martel Patrício, Ramalho Ortigão (3), O Menino-Deus, Virgínia de Castro e Almeida (3), Miguel Torga (4), Luís Filipe, Manuel Bandeira (3), Guerra Junqueiro, Azinhal Abelho (3), Pedro Homem de Mello, Manuel da Fonseca, António Cruz, Francisco Cunha Leão, Conde de Ficalho, José Régio (2), João Teixeira de Vasconcelos, Pedro José da Cunha, Alves Redol (3), Almeida Garrett, A. Fontes Machado, Julião Quintinha, Rui Knopfli, Matilde Rosa Araújo, Ferreira de Castro, A Sombrinha, Alexandre O'Neill,  Manuel Bernardes, Afonso Duarte (2), Manuel da Costa Lobo Cardoso, Teófilo de Braga, A. Pinto Correia, Francisco Manuel de Melo, Afonso de Castro, Luís Reis Santos, Carlos Queirós (2), Mário Beirão, Gustavo de Matos Sequeira, Diogo Couto, Vasco de Lucena, António Patrício, Rebelo da Silva, Fernando Amaral, Armando de Lucena, A. Fontes Machado, Nicolau Tolentino, Carlos de Seixas, Mário de Sampayo Ribeiro, João de Freitas Branco, Fernando Pamplona, Tomás Ribeiro, António Quadros, Francisco Bugalho (2), Caetano Beirão, José Gomes Ferreira (2), Agostinho de Campos, Ester de Lemos, Antero de Figueiredo, Rómulo de Carvalho (2), Castro Soromenho (2), Marcelino Mesquita, Augusto Gil, Leitão de Barros, Guilherme de Melo, Luís Teixeira, António Mora Ramos, Castro Pires de Lima, M. Sarmento Rodrigues ...
... em 243 páginas, Aquilino Ribeiro leva de vencida gente ilustre e outra mais esquecida, nos anos 60, em plena guerra colonial... e , n' O País dos Outros, Rui Knopfli escrevia ILHA DOURADA

A fortaleza mergulha no mar
os cansados flancos
e sonha com impossíveis 
naves moiras.
Tudo mais são ruas prisioneiras
e casas velhas a mirar o tédio.
As gentes calam na
voz
uma vontade antiga de lágrimas
e um riquexó de sono
desce a Travessa da Amizade.
Em pleno dia claro,
vejo-te adormecer na distância,
ilha de Moçambique,
e faço-te estes versos
de sal e esquecimento.

Tudo esqueci, mas imagino o tom apologético daquela aula em que a Ilha dourava ao Sol do Índico...                              

26.1.14

Praxes académicas. Que lhes sejam riscados os cursos!

Em 1727, D. João V determinou o seguinte: “Mando que todo e qualquer estudante que por obra ou palavra ofender a outro com o pretexto de novato, ainda que seja levemente, lhe sejam riscados os cursos.”

As praxes estão na ordem do dia!
Definição de 'praxe académica": conjunto de costumes que governam as relações académicas numa universidade, baseado numa relação hierárquica.
Por outro lado, a praxe é um manual de desmame e /ou de iniciação para quem aspira a integrar uma "ordem", uma "obra", uma "loja", um "falanstério", uma "seita"...
Sobreviver à praxe dá acesso à falange, imprescindível à conquista da economia, da utilidade e da magnificência...

Entretanto, o ministro Crato, acossado pelo alarme público, resolveu convocar as academias para debater o tema. Mais valia que, a exemplo de D. João V, anulasse os cursos aos caudilhos...



25.1.14

Se Virgínia fosse rica, Camilo frasearia noite e dia...

«Estou farto de frasear, amigo A. A espiritual Virgínia obriga-me a bolear, brunir e arredondar o período.» Camilo Castelo Branco, Carta VIII, Porto, 25 de Junho de 1854

No entanto, o cansaço de Camilo tinha uma outra razão de ser : Virgínia (Gertrudes da Costa Lobo) não era rica. Se o fosse, Camilo frasearia noite e dia: - A mulher nascida para mim és tu. (...) Não podes ser minha, porque não sou rico!
À fição basta, por vezes, virar do avesso a boçalidade, e no caso de Camilo isso é por demais evidente. Os sentimentos das personagens de Amor de Perdição surgem limpos do lodo que lhes dá "vida", e nós acreditamos neles...
Na verdade, as cartas de amor de Teresa e Simão têm a sua génese na correspondência entre Camilo Castelo Branco e Gertrudes da Costa Lobo. Esta desconhecida mulher revela nas suas cartas tal capacidade de auto-análise e espírito crítico que o próprio Camilo se lhe refere nos seguintes termos: «Virgínia estava ab ovo destinada a fazer suar o topete do autor do Secretário dos Amantes. Queria ver como o homem se tirava de apertos em correspondência com esta literata, que segundo me dizem, entende o Fausto, e o Kant. O Kant, amigo A.!»

- Infelizmente, o espartilho ainda continua na moda, embora sob a forma de palas!

PS. O idiota, hoje, passou o dia a vestir-se de prata. Só fala de prata e se saísse à rua, de prata seria! Quando for a enterrar, há de ser cremado em banho de prata...