30.11.13

O pé de porco

Vou ao mercado e compro um pé de porco. De seguida, compro duas latas de feijão branco... e vou pensando "um indivíduo da minha idade condenado a mais sete anos de magistério, se come esta chispalhada, acaba mal, ainda por cima diante de jovens que não veem razão para aturar uma múmia....»
Na verdade, aquele pensamento era desnecessário porque há muito que ando arredado de tais comezainas. Bem sei que a vida são dois dias, embora o governo diga que são três, e que o melhor é aviar-se em terra antes que a pensão falte...
De qualquer modo, o pé de porco está a dar-me trabalho, pois não lhe tendo tirado as medidas, ele recusa-se a acomodar-se na panela de pressão. Pacientemente, vou o desossificando, mas a tarefa é árdua...
Quase tão árdua, como amortizar a dívida e, simultaneamente, classificar três turmas que, perante a tese de que o endividamento nacional terá começado com a necessidade de pagar à Europa, em especiarias, o empréstimo contraído para a construção da armada de Vasco da Gama, trocam a ordem das respostas deixando-me à deriva entre uma arca frigorífica que demora a descongelar e um osso barato, mas arrenegado...
Felizmente que uma boa parte destes jovens alunos percebeu que a causa da dívida também era endógena. De facto, os europeus, já no século XVI, fixavam o preço! Só que, por seu turno, a Corte evitava o pé de porco, preferindo outras iguarias, outros luxos... deixando, como hoje, o povo na miséria.   

29.11.13

Classificador da PAAC, não!

Em sete meses, Crato quer alterar "os cursos de Educação":
Serão as escolas a decidir-se. Depois de o decreto-lei ser aprovado, depende da data exacta da promulgação, mas as escolas que não quiserem fazer este ano terão oportunidade de o fazer para o outro ano.
Ninguém vai fazer estas mudanças com pressa, vamos fazê-las com calma e de maneira sólida”, assegura.
Crato tem pressa, mas o "democrata" transige. As escolas é que sabem!
O discurso ministerial é gramatical e semanticamente eloquente: Serão as escolas a decidir-se; mas as escolas que não quiserem fazer este ano terão oportunidade de o fazer para o outro ano; ninguém vai fazer estas mudanças com pressa, vamos fazê-las com calma e de maneira sólida...
Eu estou consciente que é preciso mudar a formação, mas ninguém me pediu uma ideia.. 
No entanto, o IAVE solicitou-me que classificasse 100 textos, de tipo expositivo-argumentativo, e, em consciência, recusei, porque sei que os avaliados, sem adequada preparação, irão produzir um discurso idêntico ao do senhor ministro da educação e ciência...
Como classificador, não gosto do papel de carrasco!

28.11.13

Não me apetece escrever

Não me apetece escrever porque 4 portugueses são donos de 9,6 mil milhões de euros... 
Não me apetece escrever porque, de manhã, não pude folhear o CM, vendo-me obrigado a comprar o i, e este não me trouxe a notícia que ansiava - ela passava, fugaz, na primeira página do DN. Só mais tarde, percebi que, não sendo bordadeira nem carpideira, para mim, era NÃO-NOTÍCIA...
Não me apetece escrever porque não quero "autossuicidar-me" às 8 horas da manhã num banco de escola diante meia dúzia de plátanos chorões...
Não me apetece escrever porque o metro fechou as portas e os de sempre ficaram à lareira, com ou sem teste.
Não me apetece escrever porque não sei utilizar "palavras fortes", isto é, desconheço o que é o calão, pois há muito tempo que não viajo para as Mercês ou para Rio de Mouro. Se por lá andasse, arriscava-me a escrever um romance cheio de "palavras fortes". Supostamente, aquelas gentes não conhecem outro registo de língua, tal como há quem desconheça que possa existir a localidade "Rio de Mouro".
Não me apetece escrever porque Gabriel García Marquez inventou "Cem Anos de Solidão" para que um qualquer genealogista elaborasse uma árvore que desprezava os avisos...
Não me apetece escrever porque o Moita Flores prometeu que ia desvendar o assassinato do Presidente Sidónio e, afinal, ficou-se pelo título porque o processo consultado não dava para mais.
Não me apetece escrever porque Ulisses queixou-se da perfeição e preferiu voltar para Ítaca.
Não me apetece escrever porque, nas palavras de um esclarecido discípulo, o mesmo Ulisses foi substituído por um excêntrico boneco japonês, frustrando o Eça...
Não me apetece escrever porque a TAP está tentar vender-me um bilhete de regresso da Turquia sem que eu sequer tenha partido...
Não me apetece escrever porque na Universidade Nova, os gabinetes de trabalho fazem lembrar os gavetões do cemitério de São Marçal...
Não me apetece escrever porque Portugal, aconteça o que acontecer aos portugueses, não vai parar.

Só a imperfeição me faz regressar...

27.11.13

O compromisso

No ar, o desânimo, a descrença. 
Se a crença delega na intervenção externa, a descrença mina a vontade.
Entre ambas já não há fronteira: não há esperança!

Por enquanto a casa é lareira, 
embora não se saiba durante quanto tempo...
Só por cegueira se fica até mais tarde...

A linha (in)visível deslocou-se sem que a vela se deslocasse.
Já não há arvoredo nem flores nem aves

Só a mentira beija o frio dos teus lábios...

26.11.13

A crença

Há sempre quem acredite numa intervenção externa!
O Tribunal Constitucional virou lugar de peregrinação. São 13 os apóstolos da fé, pelo menos, foi o que entendi logo de manhã: 7 votaram pelo horário semanal de 40 horas para os funcionários públicos; os restantes votaram contra. 
Argumento, em registo familiar: os funcionários públicos não devem beneficiar de um estatuto privilegiado em relação aos funcionários privados ou até por conta própria, se esta categoria pode ser considerada.

O orçamento geral do estado acaba de ser aprovado pela maioria parlamentar, e logo, em coro, se roga ao Tribunal Constitucional que intervenha, que defenda a Constituição. O problema é que esta não proíbe os cortes nem  nada determina sobre a aplicação do princípio da retroactividade. Os legisladores eram homens sérios e, como tal, pensaram o texto constitucional como suporte do regime democrático, não imaginando que uma maioria eleita democraticamente pudesse fazer tábua rasa de princípios fundamentais...

Nesta situação, o pior inimigo do cidadão é a crença. Acreditar que os juízes irão fazer frente ao governo é o mesmo que pensar que, no Estado Novo, os tribunais plenários eram imparciais. Os juízes são homens e mulheres, têm família, amigos, partido e igreja, e acabarão por claudicar... 
A crença atual não é diferente da crença messiânica ou sebástica! Ela existe sempre como forma de compensar a inação, de manter o statu quo por muito precário que ele possa ser...

Por outro lado, é bom não esquecer que a maioria parlamentar é suportada, em grande parte, por um grupo significativo de cidadãos que continua a enriquecer, sem que os seus rendimentos sejam molestados... e desta vez não parece que eles façam parte do funcionalismo público.

25.11.13

O herói da futilidade

«A experiência é o terreno de prova.», Harold Pinter, Os ANÕES

Esta velha ideia já não encontra seguidores. 
Hoje, somos governados por homens e mulheres sem conhecimento e sem experiência. Estes governantes desprezam a experiência e, sobretudo, são um péssimo exemplo para as novas gerações...

Se os governantes maltratam os juízes, os professores, os médicos, os idosos, os doentes, os deficientes, o que é que poderemos exigir aos mais jovens? O que é que poderemos exigir às famílias? 
O que é que poderemos exigir...

A resposta surge sob a forma de notícia de:

a)  polícias que desrespeitam os pilares da democracia;
b) homens que agridem as mulheres até à morte;
c) assédio sexual e violação de menores e de idosos;
d) crimes de sangue por dá aquela palha;
e) assaltos, sequestros e vandalismo um pouco por toda a parte;
f) desfalques e tributação abusiva;
g) usura e tortura;
h) tráfico e consumo de droga a céu aberto e a coberto de opulentas mansões...

A notícia até tem jornal e TV para a amplificar, de preferência em direto!

( Na sala de aula, um professor não fala dos governantes sem conhecimento e experiência, não fala da notícia em direto! O professor procura que os alunos compreendam o pensamento de Vicente, Camões, Vieira, Garrett, Pessoa, Saramago... mas eles chegam naturalmente atrasados, sorridentes, pedem desculpa e sentam-se tranquilos como se fossem pedir uma cerveja ou charro, e ficam ali a desfiar um rosário de sensações, à espera do toque de uma campainha que, também, ela desistiu da sua função...)

«Se realmente sou um deus, sou o deus da futilidade e do remorso.»

Dito de outro modo, o herói já não é o Nuno de Camões nem de Pessoa, nem o deus de Harold Pinter, que esse ainda conhecia o remorso. 
  

24.11.13

OS ANÕES. Não vale a pena querer recontar...

Não vale a pena querer recontar o romance "OS ANÕES" de Harold Pinter, porque falta a intriga ou, no mínimo, pode dizer-se que faltam as  peripécias. 
Quatro personagens - LEN, MARK, PETE e VIRGINIA - circulam num espaço fechado, discorrendo sobre comportamentos, em que a amizade e o amor mais não são do que um lugar de traição, de sadismo e de exibicionismo... As personagens, na verdade, não dialogam: acusam-se por vezes, bajulam-se outras...
Neste romance, a ação é puramente verbal: paroles, paroles, paroles... Parece haver nele um desafio ao leitor, como se este, ao ler, recriasse à mesa, na cama, à janela, na rua, num ou noutro bar, com os amigos, uma vida absurda, limitada à bebida, ao sexo, ao palavrear... tudo em discurso direto.
No essencial, estamos perante romance do absurdo em que todos queremos ser heróis ou deuses: «Se realmente sou um deus, sou o deus da futilidade e do remorso. Nunca fiz nada por ti. Gostaria de o ter feito
Neste romance, a fronteira que o separa do drama é muito ténue, talvez, apenas, uma convenção de época - 1952 -1956.
Confesso que li Os ANÕES até ao fim, não porque esperasse um qualquer desfecho, mas porque nasci no tempo da escrita, e as minhas memórias mais antigas situam-se também elas num espaço fechado em que as palavras teciam os seus próprios muros...