7.10.13

O caldo entornado

Em tempos de pobreza, entornar o caldo é sinal não só de falta de cortesia mas, sobretudo, de desprezo pelo trabalho alheio! 
Já o meu falecido pai, pouco satisfeito com o curso dos acontecimentos, tinha o hábito de ameaçar: - Ou comes o que tens à frente ou temos o caldo entornado!
Perante esta modalidade deôntica, com valor de obrigação e inevitável tabefe (eufemismo!), eu punha-me a pau e comia tudo. Tudo, também porque sempre gostei de caldo (verde, galinha...).
Ao fim de tantos anos, já perdoei a violência do discurso e do gesto, porque, cedo, compreendi que a culpa era do curso dos acontecimentos.

Ora, nos últimos dias, voltei a sentir-me sob ameaça! Uma ameaça inesperada, porque vinda de um homem tão importante como o presidente Durão Barroso: - Se o Tribunal Constitucional não fechar os olhos às diatribes do governo, teremos o caldo entornado!

Como está na moda a aplicação retrospetiva de medidas, também eu deveria poder rever as classificações dos meus alunos de 1975-78, isto é, entornar o caldo àqueles jovens do MRPP que me entravam na sala de aula aos gritos recusando ler Os Esteiros, A Abelha na Chuva, Os Gaibéus (dos sequazes do «Barreirinhas Cunhal»!) ou até Os Lusíadas
A rapaziada é a mesma só que mais gorda, mais velha e néscia!

6.10.13

Um domingo pardo!

Um domingo pardo!
De notícias não tomei nota que a televisão só dá conta da prosápia de quem nos desgoverna.
Às voltas com  "coelho" e coalho"*, sem entender o processo fonológico, como se nesta triste língua fosse possível tal evolução. Eu, sem compreender que relação estabelecer entre "coelho" e "coágulo", quando, de súbito, descobri que um coelho pode ser o coágulo que nos causa fatal apoplexia.
Esta minha fragilidade linguística foi, por seu turno, causa de ter passado uma parte do dia a sujeitar-me às exigências de comerciantes digitais (Porto editora e Microsoft, respetivamente) que para uma aplicação exigem um browser (Google Chrome) e para outras um outro (Internet Explorer), e que impõem ao utilizador, para que possa aceder a um produto, que aniquile o inimigo...
No meio desta azáfama, ainda tive que me perder no novo Dicionário Terminológico que é um verdadeiro alfobre de preciosismos e que os nossos autodidatas seguem à risca, lembrando aqueles escolásticos que durante séculos nos encheram o bucho de fantásticos silogismos...

* Com tudo isto, acabei por perceber que neste país preferimos o exemplo da dissimilação fonológica (ou será dissimulação), criando a cada passo equívocos com que nos vamos entretendo.

5.10.13

Perdão fiscal até ao Natal

Perdão fiscal até ao Natal!
Vale a pena não pagar a tempo e horas. Vale a pena deixar afundar a Segurança Social! Vale a pena colocar o dinheiro em paraísos fiscais!
Porque há sempre um governo magnânimo, cristianíssimo, pronto a perdoar. E já nem é preciso esperar pelo arrependimento quaresmal. De outubro a dezembro, o infrator sabe que não irá preso, não pagará juros e, provavelmente, terá desconto...
Diz o governo que com esta medida irá arrecadar 600 milhões de euros! E quanto arrecadaria se deixasse prender os infratores e não lhes perdoasse a demora?
Deste modo se entende por que motivo certos feriados foram extintos - 5 de outubro e 1 de dezembro. A sua manutenção ainda poderia criar algum sobressalto patriótico que atirasse para as masmorras o cristianíssimo governo e os seus compinchas.
 
Até já o anti-masoch camarada presidente quer celebrar os valores de Abril! E percebe-se porquê!  "Valor" é um daqueles termos polissémicos que encheu os bolsos dos compinchas de várias gerações.

4.10.13

Pobres crianças!

I - Pobres crianças que morreis afogadas nas águas de Lampedusa enquanto que tu, que já sais de casa a recitar o «Pai Nosso que estais nos céus», te diriges à igreja do Cristo Rei a fazer prova do teu doutrinamento e, depois, já "noiva do senhor", irás deglutir o bolo eucarístico, cerimoniosamente, preparado para celebrar a vitória autárquica!
Pobres crianças que morreis gaseadas no bairro de Quabun enquanto que tu te diriges a Assis para te encontrares com um Papa que convida os pobres a sofrerem a pobreza e pouco incomoda os poderosos, mesmo que considere uma "vergonha" o que vai acontecendo na Somália, na Eriteia, na Síria! 
Pobres crianças!
 
II - Pobres crianças migrantes! A neologia não deixa de surpreender! Até há pouco, as migrações eram constituídas por emigrantes e por imigrantes. Mas hoje a notícia já designa como migrantes aqueles que, não sendo ainda nómadas ou refugiados,  se deslocam simplesmente à espera de um golpe de sorte:
 
«Mais de uma centena de migrantes africanos morreram quando o barco que os transportava naufragou junto à ilha de Lampedusa. O Papa diz ter vergonha.» i, 4 de outubro 2013 

3.10.13

Em bicos de pés

Põem-se em bicos de pés e clamam contra as contradições  dos políticos do FMI. Esse clamor, no entanto, é de quem prefere fechar os olhos e os ouvidos às exigências dos credores.
Os jogos palacianos dos políticos não interessam aos mercados. Os únicos jogos que estes conhecem são os de casino.
Hoje, parece que os técnicos da TROIKA puseram fim a este fase avaliativa. Mas é mentira!
Enquanto o OGE para 2014 não estiver promulgado e liberto da censura do Tribunal Constitucional, os representantes dos credores continuarão em Lisboa. Nem poderia ser de outro modo num protetorado político!
Infelizmente, os próximos meses serão de pura demagogia e lá para o início da Primavera iremos novamente a votos e estaremos mais pobres...

2.10.13

Usados e aldrabados

Acabo de vir (de um postigo) de uma farmácia (de bairro), ondei comprei um medicamento no valor de 3,95 € e paguei 2,50 € de taxa de serviço noturno.
Que a Clara Ferreira Alves me perdoe, mas, hoje, vou imitar o JRS: do perfil do farmacêutico (ou seria empregado?) nada vou dizer, assim como não vou descrever o enquadramento, ou melhor, o posicionamento da fila (ou seria bicha?) diante do guiché - assim mesmo afrancesado, embora eu prefira o postigo. Mas como não havia aldraba, deixo-me levar pela neologia, apesar de aldrabado. Bem sei que era preferível ter antes usado o termo galicismo.
- Usado, porquê?
- O menino não sabe que os sapatos é que são usados? Vá, deixe-se disso, e diga comigo: «Era preferível ter utilizado o vocábulo galicismo...»
- Disso, senhor professor, aqui no meu florilégio (ou será manual?), essa palavra tem valor polissémico! Agora é que eu não percebo nada!
( Se quiserem, podem imaginar o que eu estou a pensar de certos cientistas da linguagem e da avaliação!)
Quando di-da-ti-ca-men-te explico as formas de intertextualidade, enumero-as como o JRS. Abro o catálogo. E lá vem ao lado da paródia, antes ou depois da citação e do plágio, lá vem a ALUSÃO:
O GNOMO NO JARDIM. Que belo título!
No Jardim (da Fundação Calouste Gulbenkian), vão entrando os gnomos que aspiram a ombrear com o Gigante, mas, pobres coitados, falta-lhes a estatura... e, ao contrário do JRS, nem jeito têm para entreter...

1.10.13

Quando alguma coisa corre mal...

Quando alguma coisa corre mal, o caminho mais fácil é designar um bode expiatório.
O critério da escolha é selecionar aquele que rejeita a subserviência e que obedece a um imperativo emancipador.
Infelizmente, é mais fácil alinhar pelo condicionamento do que exaltar quem trabalha em prol da liberdade ser, aprendendo por si a definir o seu caminho, partilhando com o Outro o resultado do ato de pensar e de inventar.
Na verdade, há quem prefira copiar a inovar...
Vivemos num país que prefere a formatação à imaginação!