30.6.13

A coexistência declarada num estado amordaçado

«Há uma coexistência declarada na manifestação de protesto (...) - uma forma de coexistência que assume a instrumentalidade como uma máscara: a razão exterior invocada só como pretexto ou apelo à comparência é necessária, uma vez que esta forma de coexistência é o seu próprio objetivo e fim principalZigmunt Bauman, A Vida Fragmentada (1995)
 
Só num Estado amordaçado é possível cercar uma manifestação de protesto sob o pretexto da razão exterior, do toque a reunir. Cercear um apelo à coexistência é não entender a necessidade de combater a política que isola o indivíduo, lhe corta os laços que o podem dignificar, tornando-o essencial ao bem comum.
O grupo é a expressão ativa da soma das vontades individuais de coexistência. Num Estado amordaçado, a alternativa à coexistência declarada é a ação direta - a anarquia.
Dentro de dias, iremos ficar a saber até onde este Estado quer chegar: se aceita a coexistência declarada ou se prefere o gesto anárquico.
No tribunal decidir-se-á quão próximos ou distantes estaremos da solução fascista.
 

29.6.13

Peniche, caminho sobre o pontão

Caminho sobre o pontão, e, durante alguns minutos, penso que não terei que voltar para trás e, sobretudo, penso que já escrevi que não posso regredir.

Mas não é verdade! Esgotado o betão, e não me atrevendo a lançar-me à água, olho o azul do mar dos evadidos Álvaro Cunhal e camaradas, e regresso sobre mim, contrariado, pois pressinto a traição da caminhada: um cansaço indizível apodera-se de mim e as palavras enredam-se esverdeadas num cercado abandonado…

/MCG

28.6.13

O cerco

O mais fácil é remeter-me ao silêncio, engolir em seco, emudecer. No entanto, a luta pela sobrevivência exige que nos enraizemos nas areias movediças e que sigamos em frente.

Se os espinhos surgem no caminho é porque a esterilidade do solo assim o determina. Ao ouvir certos governantes, parece que os rebeldes germinam maleficamente de per si, e que bastará  cercá-los durante horas, conduzi-los ao campus justitiae  para que, humilhados, desistam de lutar pela sua própria vida.

Os transportes aéreos e terrestres podem ser paralisados durante dias; os hospitais podem deixar os doentes à porta e as cirurgias podem ser adiadas; os estivadores podem suspender o movimento de carga e descarga durante meses; os banqueiros podem deixar ocupar os seus próprios bancos por todo o tipo de escrocs; os governantes podem despudoradamente servir interesses ocultos…

…todas estas ações estão legitimadas, independentemente dos prejuízos…

…só três centenas de manifestantes não têm o direito a fazer um corte temporário de estrada se esse era, de verdade, o seu objetivo.

A igualdade é, afinal, bem desigual!

27.6.13

Jogos verbais

«De maneira que Rossélio não se admirou quando percebeu que nunca alcançariam o Maria Speranza, nem Shandenoor, nem regressariam a Carvangel, e também não se importou.» Mário de Carvalho, O Varandim seguido de Ocaso em Carvangel, 2012 
 
N'O Varandim, o espaço fechado é arrasado pela dinamite anarquista depois de uma longa disputa sobre como assegurar o melhor lugar para assistir ao enforcamento de alguns relapsos. O acontecimento leva a uma longa transformação da casa fronteira - ao negócio das vaidades sociais...
 
Em Carvangel, a sociedade move-se em torno de um desmesurado canhão e na obrigatoriedade de embarcar no Maria Speranza, não como imposição, mas como desejo coletivo ou, talvez, inevitabilidade.
À medida que a narrativa avança, a neologia cresce designando espaços e até iguarias fictícias; as próprias personagens mais não são do que reflexos ou complementos... Rossélio, sem nunca se adaptar aos jogos locais, acaba por abdicar do sentido dos atos e das coisas, percebendo, todavia, que de nada serve procurar saída ou tentar regressar.
Já nem os anarquistas conseguem combater o estado concentracionário!

26.6.13

Os mabecos

Ainda decorre a entrevista ao ex-ministro das finanças, Teixeira dos Santos,  e já os mabecos correm para a antena. A publicidade prolonga-se enquanto lhes aparam as garras e as sobrancelhas.
O fio condutor já tinha sido estabelecido pela Judite Sousa: Teixeira dos Santos viu-se obrigado a enfrentar a teimosia de Sócrates; no calor da contenda, cortaram relações; a degradação financeira mais não seria que o resultado da teimosia e da cegueira do primeiro-ministro e do partido socialista; o colapso pouco teria a ver com a traição dos mercados e da política da união europeia...
( Já passaram 15 minutos, e os mabecos nos bastidores. A publicidade continua...)  
Quanto à cronologia dos acontecimentos, a jornalista desvaloriza-a; interessa-lhe apenas o guião da traição e do sangue; para a análise do presente, reserva dois minutos, entrecortados por várias perguntas, sobressaindo a preocupação do guionista em relação ao futuro político do entrevistado...
( A publicidade continua, dos mabecos ainda não se avistam as orelhas, devem estar sintonizados com os diretórios políticos!)
Afinal, parece que os mabecos já estão na antena ... eu é que tenho estado no "big brother" e não sabia... Ainda não percebi bem para que é que servem estas entrevistas!

25.6.13

Vitória de Pirro

A única expressão que me vem à cabeça ao escutar governantes, comentadores e sindicatos da educação é que estamos perante uma «vitória de Pirro». Com o "entendimento" obtido, mas sem "acordo", as tropas desbaratadas regressam ao trabalho. No entanto, daqui a um mês, já será possível perceber que faltarão milhares de horas para cumprir as promessas de hoje.
E nada disto faz sentido quando a notícia é que o deficit, no 1º trimestre, ultrapassou os 10%.
Vivemos em tempo de promessas e não faltam por aí fervorosos crentes...

24.6.13

Silva Carvalho e Mário de Carvalho

«O real não é uma manifestação da matéria. / O real é a matéria de onde irrompem as coisas.» Silva Carvalho, Logo, Só Há História, 2013
 
Silva Carvalho é um escultor da palavra que nos pode deslumbrar se tivermos tempo para nos fixar nessa casca rude da matéria de que irrompemos. Como ele há muito poucos! Presentemente, vou lendo Mário de Carvalho (O Varandim / Ocaso em Carvangel, 2012), para quem a reconstituição de léxicos específicos é um modo de reconstituir atividades extintas e/ou longínquas.
Não sei se estes dois escritores se frequentam, mas creio que ambos, cada um à sua maneira, vivem obsessivamente a captura do real, da matéria na sua extensão e duração.
De momento, não me sinto autorizado a ensaiar um comentário mais aprofundado. Mas sinto que ambos merecem ser lidos atentamente, apesar de saber que os leitores preferem uma língua simplificada, esburgada de referencialidade.
Na verdade, vivemos num tempo formatado, que, apesar da globalização, ignora a duração (História) e prefere o GPS.