27.6.06

Uma oportunidade perdida

«Nos mitos (Ícaro) e nos sonhos, o voo exprime um desejo de sublimação, de procura de harmonia interior, de superação dos conflitos; (...) as grandes nações voam por cima da terra, traindo a psicologia colectiva, pois a vontade de afirmar o poder no céu não é mais do que uma forma de compensar a impotência na terra.»
Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, O Dicionário dos Símbolos, Voo
Num tempo em que a inteligência era perseguida, a Bartolomeu Lourenço (alter ego de Saramago) só restava o sonho de voar para tentar saber como é o sol por dentro, para poder mostrar como é a terra de Mafra (o estaleiro do sonho real!) por dentro... Só voando por cima - e não para longe! - lhe era possível ter uma perspectiva global da paranóia dos poderosos... No interior da caverna jamais se acede ao círculo exterior!
O voo temerário liberta, rasga o horizonte, desloca-nos (pequenos ícaros!) para círculos exteriores cada vez mais amplos que nos mostram o pavor interior da terra, mas, ao aproximarmo-nos do sol, talvez possamos ver a fonte da vida... se observarmos a lição de Dédalo.

24.6.06

Nestes dias de silêncio...

Nestes dias de silêncio, fazem-se ouvir os pássaros que chilreiam ininterruptamente. De repente, um aluno pergunta as horas. Substituíra o relógio pelo silenciado telemóvel!
Talvez, seja útil quantificar o rombo financeiro provocado pelos exames nacionais: 50% dos alunos faltam à 1ª fase, o que significa que metade das provas tornam-se desperdício; o mesmo se repete na 2ª fase, pois os alunos inscrevem-se novamente para exame - a floresta sofre!; os telemóveis silenciados durante horas-e-horas deixam de engordar as empresas de telecomunicações e o fisco...
Não vejo ninguém que beneficie com os exames, a não ser, talvez, os médicos: sempre passam mais uns atestados e receitam mais umas pílulas para fortalecer os cérebros dos incompreendidos adolescentes.
(...)
Uma vigilante arruma meticulosamente a secretária: ao centro, as folhas de prova; do lado direito, as folhas de rascunho; do lado esquerdo, a pasta azul que guarda a tesoura, o saco dos enunciados sobrantes e a pauta, onde 15 minutos depois do toque, ficaram assinalados todos os que faltaram na expectativa de que a 2ª fase seja mais simples.
O outro vigilante franze o sobrolho. A prova de Filosofia não difere das anteriores, pelo menos, desde 1998 : a mesma estrutura, os mesmos autores, as mesmas obras, as mesmas perguntas - gostei, particularmente, do argumento socrático de que «a missão do político é fazer de nós os melhores cidadãos possíveis.»
(...)
Creio, no entanto, que, apesar dos alunos poderem memorizar previamente 50% das respostas, os autores da prova se esforçaram por testar uma boa parte do programa de Filosofia. O mesmo não poderei dizer dos autores da prova de Português: qualquer 'corrector' sabe que a maioria dos alunos pode obter 60 pontos (em 200) sem escrever uma palavra; e também sabe que, ao contrário do que acontece na disciplina de Filosofia, o aluno não necessitou de ter lido qualquer obra...
Os exames actuais mais não são que um desaproveitamento de recursos... Que impacto podem ter, por exemplo, os exames de Português e de Filosofia na avaliação final do 12º ano dos alunos internos? Haverá alguém que consiga reprovar? Será que estes exames «fazem de nós melhores cidadãos»?
(Tristes vão os dias / de Lisboa a Timor / à mercê de homens sem valor... // Alegres vão os dias / de Lisboa a Berlim / num vai-e-vem sem fim/

22.6.06

Em que século estamos nós?

Proposta de jogo: Explicite duas das funções das falas contidas neste excerto.
« D. Rita, avistando o préstito das liteiras, ajustou ao olho direito a sua grande luneta de oiro, e disse:
- Ó Meneses, aquilo que é?
- São os nossos amigos e parentes que vêm esperar-nos.
- Em que século estamos nós nesta montanha? - tornou a dama do paço.
- Em que século?! O século tanto é dezoito aqui como em Lisboa.
- Ah! Sim? Cuidei que o tempo parara aqui no século doze...»
Camilo Castelo Branco, Amor de Perdição
_________________________________________
Colocam-se 50 correctores (?) numa sala. Ordena-se-lhes que leiam, comentem e resolvam uma prova, por exemplo, de Português. Prisioneiros da Acta, estão obrigados a registar os seus estados de alma. Concluída a praxe, poderão rumar à sala-ao-lado, onde receberão as provas a classificar. Há anos que esta cerimónia se repete!
Ninguém preside ao acto. Agrupamento? GAVE? Recolhidos ..., admitem contacto telefónico, mais tarde. Na sala, durante 15 minutos, uns lêem, outros relêem e alguns aproveitam para pôr a conversa em dia com o parceiro de ocasião - há um ano que não se viam! Tudo em lume brando. Entretanto, o tom ciciante torna-se conspirativo - há quem comece a dizer em alta voz o que pensa da prova 639...
Uma jovem correctora, assustada com aquele misto de pasmaceira e de conspiração, procura puxar as rédeas para que o bota-abaixo não tome conta da assembleia: há quem não entenda a formulação das perguntas; não se percebe se a prova foi auditada... e se o foi, quem terá sido o auditor? Há quem tenha deixado de entender o significado da palavra «percepção». Não há tempo para distinguir a percepção sensorial da percepção intelectual. Terá o autor da prova pensado nos modos como se percepciona? O que é que aconteceu à clareza que deve caracterizar a pergunta ou qualquer outra «instrução»?
Apressando a conclusão da acta, e como a maioria das «instruções» era ambígua, os correctores reivindicaram, ali, o direito de «aceitar» todas as respostas, fazendo tábua rasa do princípio da uniformidade de critérios. O país começava e acabava para os lados do Jardim da Estrela!
Já em 1975, no anfiteatro do Liceu Passos Manuel, uma outra assembleia de correctores reivindicara a «aceitação» de todas as respostas, numa rejeição democrática de qualquer pretensão de resposta única. O ensino centrava-se definitivamente no aluno; os professores passavam a ser uma fonte - secundária - do conhecimento; os alunos rivalizavam com os professores, pois todos partilhavam as mesmas fontes.
Hoje, esses alunos de 1975 tornaram-se numa fonte única, elaborando provas que nada testam... visando apenas satisfazer a vaidade dos oportunistas e dos preguiçosos...
Creio, no entanto, que esta geração de 75 tem os dias contados. Há cada vez mais jovens que procuram o conhecimento e que se sentem traídos, quando colegas, que ao longo de um ciclo de três anos nada fizeram, acabam por ter classificações idênticas ou mesmo superiores.
Esse sentimento de traição começa a separar as águas. É ver como «respondem» ao trabalho que lhes é proposto. Como o fazem com gosto! Como envolvem os amigos e os familiares na pesquisa a que se aventuram! Como se preocupam com a apresentação do trabalho e, sobretudo, com a qualidade!
Entretanto, há quem diga que a geração de 75, num último estertor, decidiu proibir os trabalhos de casa. Afinal, os "tpc" só servem para acentuar as desigualdades!
Será verdade?

20.6.06

O sorriso escarninho virou esgar...

( Ao contrário de Alberto Caeiro, quero homenagear todos aqueles que, ainda, não desistiram de procurar o sentido íntimo das coisas...)
Neste tempo de imobilidade, enquanto que eles, padronizados, estão aplicados na resolução da prova de sociologia, desloco-me mentalmente na tentativa de compreender o sorriso escarninho que acompanha habitualmente a referência a qualquer ex-seminarista ou ex-padre, como se um ferrete os marcasse definitivamente, tornando-os objecto de uma curiosidade mórbida.
Apesar de se tratar de uma espécie em extinção, o estigma denuncia-os indelevelmente: no modo de falar, no tom, no olhar de soslaio, no andar, no vestir, no excesso do gesto... na forma de estar retraída ou afectada. Provavelmente, a dissolução provoca sempre um labéu e o sorriso escarninho irrompe sempre que a mancha infamante pede a nossa cumplicidade, nos arrasta para a esquerda de Deus... (asserção que não é possível comprovar na sura!)
(...)
Esse sorriso escarninho, que me persegue desde manhã cedo, virou esgar naquele acampamento de vozes desgrenhadas que clamamavam vingança... mas, à medida que a sombra avança, a caruma recolhe as beatíficas agulhas e regressa à imobilidade inicial...e não raras as vezes ao abjecto torpor do sono efémero...

19.6.06

A destruição do sentido... do trabalho...

Bastava ter lido o texto crítico «Memorial do Convento», em Os Sinais e os Sentidos, para não se cair no erro de banalizar o pensamento de Óscar Lopes. Como se a primeira metade do século XVIII fosse, de facto, extraordinária aos olhos de José Saramago ou de Óscar Lopes! O retrato do século XVIII traçado por Saramago é que poderá ser insólito, entre outros motivos, pela «emergência de caracteres populares individualizados no seio de uma grande movimentação multitudinária como que em busca de sentido próprio
A megalomania, a opulência, a hipocondria, a beatice, a libidinagem, o esclavagismo, a xenofobia surgem, no romance, como formas ordinárias, previsíveis do absolutismo grotesco que se abateu sobre o séc. XVIII português. Da procissão à tourada, passando pelos autos-de-fé e pelos lupanares conventuais.
Mesmo se não houvesse outro motivo, bastava a pergunta nº4 do I Grupo da Prova de Exame de Português (639) para concluir que o Ministério da Educação prestou um mau serviço aos alunos, a Saramago, a Óscar Lopes,... ao País.
Infelizmente, esta Prova de exame também presta um mau serviço à Língua Portuguesa porque a redacção dos enunciados é medíocre: I 1.; 2.1 - «Identifique duas das vozes aí presentes, exemplificando cada uma das vozes por si indicadas com duas transcrições do texto.»; 2.2.; 3.; III «apresente uma reflexão sobre a perspectiva referente à exploração do espaço, expressa no extracto do verbete..
E, sobretudo, esta Prova de exame não chega a testar 5% do Programa do 12º Ano. Que competências é que são efectivamente postas à prova?
Afinal, quem é que está interessado em valorizar o trabalho daqueles alunos que leram Pessoa, Camões, Saramago, Sttau Monteiro? E também dos que arduamente escreveram e reformularam múltiplos textos, obedecendo a técnicos e a métodos diferenciados? E de todos os que se empenharam em compreender e aplicar as regras do «funcionamento da língua»
Afinal, para que é que serviu a última revisão curricular?
E quanto à dedicação de muitos professores de Português, mais vale nada dizer!
É, contudo, pena que haja professores que se prestem a servir tão mal a Pátria que os viu nascer!

17.6.06

Poderia dizer-te...

Poderia dizer-te, qual Marco Polo dos tempos modernos, que a chuva ameaçou cair sobre a cidade, mas isso tu sabes: não passou de uma ameaça...
Poderia dizer-te como é ficar em vez de partir, mas isso tu sabes: são mais as vezes que ficas do que partes...
Poderia dizer-te que o cansaço tomou conta dos corpos, mas tu sabes que isso não é totalmente verdade: há sempre uma buzina, uma bandeira que esvoaça nas avenidas da cidade...; há sempre «uma bola branca em cima da cabeça /Bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo...»
Poderia dizer-te que a Gabriela Llansol publicou novo romance destinado aos 'legentes', que não aos leitores - "Amigo e Amiga. Curso de Silêncio 2004" -, que Mário Ventura Henriques nos deixou, desgostoso da implosão da sua amada Tróia, que David Ferreira não compreende por que motivo o seu saudoso pai - David Mourão Ferreira - foi sendo esquecido ao longo dos últimos dez anos, que Mário Cláudio está convencido que, com o seu 'Camilo Broca', está a prestar um grande serviço à Literatura, transformando o Camilo Castelo Branco numa «caixa de ressonância», talvez num tam-tam... Mas isso tu não queres saber! De que serve sabê-lo? Nem sequer será assunto do exame de Português do próximo dia dezanove! A única coisa que talvez te pudesse interessar seriam as respostas, desde que não fosses obrigado a elaborar as perguntas...
Poderia dizer-te que voltei a ver 'Notorious" (1946) de Alfred Hitchcock, mas isso só serve para me mostrar que a minha memória só se concentra em pormenores, como os da 'chave', da 'adega' e da 'garrafa'. Que mistério é que estes signos poderão esconder-me? Não sei, nem tu podes saber.
Hoje, quero, no entanto, dizer-te que ainda não esqueci o A. Cosme da primeira metade dos anos 80. Hoje, quero, dizer-te que não posso esquecer o grito de dor que me deixou na caixa do correio, em Agosto de 1985:
Não sei ao que me disponho
Nesta angústia que me enlaça;
O tempo é só o que a alma passa
E eu só quero viver outro sonho.
Já não sei mais amar esta vida
Nem defender o que ela me oferece;
Minh'alma mora num corpo que arrefece
Favorecendo esta mágoa tão sentida.
Sou uma substância inerte em peso
Cujas qualidades se perderam na viela
Onde supus uma luz, a mais bela,
Mas que escureceu meu coração indefeso.
Já nem sei bem o que é sofrer;
Acabo por não ter o que me enlaça
E, cadáver rejeitado só de massa,
Esqueço a fonte que me fez viver.
Poderia dizer-te que só, hoje, tive coragem para abrir a caixa do correio, mas isso tu preferes que não seja totalmente verdade...

15.6.06

O Corpo de Deus e a inteligência lógica

«... por agora vai a procissão em meio, sente-se o calor da manhã adiantada, oito de Junho de mil setecentos e dezanove, que é que vem agora aí, vêm as comunidades, mas as pessoas estão desatentas, passam frades e não se dá por eles, nem as irmandades foram todas assinaladas...» José Saramago, Memorial do Convento
Hoje, 15 de Junho de 2006, também na minha memória difusa passa a procissão do Corpo de Deus; outros, talvez mais atentos à intempérie, nela tenham participado, integrados nas poucas irmandades que sobraram da laicização racionalista. Nos passeios, movem-se outros postulantes impacientes, capazes de insultar a custódia patriarcal, enquanto as floristas se esforçarão por vender aquela flor que um dia um menino de coro ofertou a um cano de espingarda.
Hoje, 15 de Junho de 2006, esse menino de coro, já crescidote, indisponível para acolitar qualquer D. Policarpo, rumou a Sul, na esperança de que o Deus Sol o torne num dos jogadores de xadrez de Ricardo Reis: «Mas quando a guerra os jogos interrompa, / Esteja o rei sem xeque, / E o de marfim peão mais avançado / Pronto a comprar a torre
O que eu não entendo é que nesta república, em nome da liberdade de culto, se tenha banido o D. Policarpo do protocolo do Estado - ideia que, creio, jamais terá passado pelo cabeça do magnânimo Rei-Papa D. João V - e continuemos a aproveitar matreiramente os santos dias do calendiário eclesiástico católico!
Ainda consultei a crónica do Pacheco Pereira, na esperança de que ele questionasse o engenheiro Sócrates sobre a celebração do Corpus Christi num país que, na prática, rejeita as suas raízes, mas ele - P.P., hoje e nos próximos dias, teoriza sobre 'Blogues: a apoteose do presente"... o que me atira, prosternado, para o último parágrafo do Manifesto Técnico da Literatura Futurista (11 de Maio de 1912) de F.T. Marinetti: «Depois do reino animal, eis o início do reino mecânico. Com o conhecimento e a amizade da matéria, da qual os cientistas não poderão conhecer senão as reacções físico-químicas, nós preparemos a criação do homem mecânico de partes mutáveis. Nós o livramos da ideia da morte e, por conseguinte, da própria morte, suprema definição da inteligência lógica