8.5.06

Bem sei que a caruma se acama ou combusta facilmente...

(Se os predicados parecerem insólitos, asseguro que isso é fruto do pouco uso! Absolvidos os predicados, regressemos às coisas difíceis.)

Bem sei que a caruma se acama ou combusta facilmente e, por isso, não se lhe pode exigir que cultive a memória. Mas nem mesmo assim me conformo que não haja uma efectiva aposta no estudo da História dos séculos XIX e XX.

Perante o quadro de Francisco Goya que retrata os desmandos dos exércitos napoleónicos, os alunos do ensino secundário empastelam russos, pides, judeus, nazis, jesuítas, familiares-do-santo-ofício e até cenas de filmes belicistas a-não-ver.

Felizmente, são quase todos contra a guerra, embora desconfiem que sem ela o mundo não avançaria.

E por isso, numa primeira oportunidade, estão prontos a mudar de campo, pois como bem sabemos todo o burro come palha, a questão é saber dar-lha.

7.5.06

A máscara que chora...

Finalmente pude ver a exposição "Frida Kahlo 1907 - 1954" no Centro Cultural de Belém. E digo, finalmente, porque procurei a exposição ainda antes da sua inauguração, motivado pelo cartaz que reproduzia o quadro "Coluna Partida", de 1944. Ignoradas as circunstâncias da sua produção, este quadro parece emergir de um delírio de Dalí. Mas não, ele enraíza-se num autodomínio ímpar perante as contrariedades da vida, sobretudo, as constantes limitações de ordem física. Expõe a altivez da consciência perante a fragilidade do corpo, de tal modo que o auto-retrato se transforma num meio capaz de capturar aquela parte que de si parece afastar-se, deixando-nos ver a tortura da imobilização, o cansaço e a dor... a dor de si.
E quando deixa de olhar para essa dor de si, vê, em si e naqueles que lhe estão próximos, formas e cores que nos deixam antever um México nativo, onde a vida e a morte se encontram genuinamente ligadas. Onde o culto dos mortos é uma forma de vida, bem diferente da encenação espanhola da morte, inventada pela Contra Reforma.
Na arte de Frida, a máscara não esconde, não finge... a máscara que colocamos quando já não há nada a ocultar, a máscara chora.

6.5.06

1961, a preto e branco

A oportunidade de ver, na Cinemateca, o filme Une Femme est une Femme, de Jean-Luc Godard, realizado em 1961 e, apenas, estreado em Portugal a 18 de Novembro de 1975, no desaparecido cinema Estúdio, trouxe-me à memória um conjunto de dados que, aparentemente, nada têm a ver com o referido filme.
Em 1961, começava a frequentar a escola primária e esse início ficou, de imediato, marcado pelo falecimento do professor JL. Da sua presença, resta a ideia de que se tratava de um homem enorme, extremamente severo, que não abdicava do castigo físico para impor a lei da pátria. Um homem temido pelos alunos e reverenciado pelos pais. O professor tinha sempre razão! Tal como o grande timoneiro, o Dr. Oliveira Salazar.
Muito longe dali, na madrugada de 4 de Fevereiro de 1961, um grupo de patriotas angolanos atacara a prisão de S. Paulo, o aquartelamento da Companhia Móvel da PSP e a Casa de Reclusão Militar. Os revoltosos perderam 40 elementos e as forças da ordem, sete. Os sobreviventes refugiaram-se nas matas do Norte e Nordeste de Angola. Durante os funerais, colonos brancos em fúria massacraram centenas de negros. Entretanto, a 15 e 16 de Fevereiro de 1961, grupos de camponeses bakongos, enquadrados pela UPA, atacaram postos administrativos, vias de comunicação, povoações e sanzalas, mutilando e matando homens, mulheres e crianças europeus, assim como assimilados negros ou mulatos, considerados agentes dos portugueses. A resposta portuguesa foi rápida e brutal e não se limitou à região dos ataques rebeldes. Foram à pressa formadas e armadas milícias brancas. O reino do terror instalou-se.
Em consequência destes acontecimentos, Salazar remodelou o Governo, chamando para as pastas do Ultramar e dos Estrangeiros, Adriano Moreira e Franco Nogueira, e dando início à guerra do Ultramar como resposta ...
Só muito mais tarde, compreendi que o ano de 1961 - o ano em que entrara na escola primária -fora um ano determinante quanto ao futuro de Portugal e das suas colónias - as províncias ultramarinas - merónimas da gloriosa pátria portuguesa.
E também muito mais tarde, Pepetela (em A Geração da Utopia) ajudou-me a compreender que as mulheres de Lisboa, em 1961, vestiam de negro, com um lenço negro na cabeça. Não se sabia se vinham dum enterro ou do campo. Se traziam luto por familiares mortos em Angola, com o levantamento do Norte...
Em 1961, quando o luto (o negro) se abate sobre Portugal, Jean Luc Godard realiza o seu primeiro filme a cores - Une Femme est une Femme. E hoje, ao vê-lo, percebi melhor os motivos do atraso em que nos encontramos. E talvez tenha, também, percebido a razão da desmemória que me afecta: o filme produzido em 1961, só foi visto em Portugal em 1975 - a diversidade chegara...
Mas será que ainda vamos a tempo de realizar o filme: Portugal é Portugal? Mesmo que seja um Portugal tão gracioso e ingénuo como a Ângela Recamier!
PS: Este filme não deve ser confundido com o do realizador Scolari!

5.5.06

Raras e difíceis coisas dignas de atenção

«Omnia praeclara tam difficilia quam rara sunt.» Espinosa, Ética (Todas as coisas dignas de atenção são tão difíceis quanto raras.)
Se todas as coisas nos merecessem a mesma atenção, o que é que aconteceria à nossa memória? Provavelmente, incapazes de tratar toda a informação, entraríamos em colapso. Deixaríamos de ordenar os dados, de os procurar interpretar, de os valorizar. E finalmente, entraríamos numa deriva nihilista interminável.
E se... se... a hipótese acabada de colocar já for realidade, então teremos perdido a capacidade de nos ocupar das coisas dignas de atenção - as raras e difíceis coisas!
Teremos perdido a capacidade de motivar os outros para essas raras e difíceis coisas dignas de atenção!
E por isso na próxima terça-feira, os meus alunos poderão finalmente perceber que, - tal como muitos já suspeitam - afinal, não há coisas dignas de atenção... pois um outro professor me substituirá com igual (superior!?) proveito, desde que lhe tenha deixado a aula planificada...
Espero, no entanto, que nenhum aluno leia esta observação. Caso isso aconteça, esclareço que a terça-feira, não é a próxima, mas, sim, uma qualquer terça-feira de 2007.
Apesar de tudo, sobra uma dúvida razoável: Se as coisas dignas de atenção são raras e difíceis, ainda haverá alguém para quem a dificuldade seja um estímulo?

4.5.06

Explicação

A língua portuguesa, por vezes, é traiçoeira e pode gerar equívocos. Por isso, há dias procurei explicar a disponibilidade da caruma.... E para quem, ainda, não entenda a razão de ser deste blog, quero dizer-lhe que ele tem para mim uma enorme importância, porque obriga-me a registar, ainda que, por vezes, ficcionalmente, ocorrências (ideias!?) que, doutro modo, esqueceria de todo. Sempre tive dificuldade em memorizar rostos, situações, conversas, histórias (estórias). E porque ao longo dos anos tive que lidar com mil e uma pessoas, em contextos diversos, sinto cada vez mais pena de não ter um registo sistemático... E sei que frequentemente caio em situações ridículas, pois, quando abordado por, vizinhos, colegas, alunos, familiares, por vezes, não os consigo identificar...
Como quando nasci não vinha preparado para este bulício, tive que queimar muitas etapas, digo agulhas, e a minha esforçada memória, que nunca aprendeu correctamente os mecanismos da articulação frásica, passou a utilizar obscuros critérios arquivísticos... Nesta nova etapa, a escrita de um blog permite-me atrasar esse processo irremediável de desmemória... Eu bem sei que há neurologistas e afins, mas enquanto os puder adiar e, ao mesmo tempo, atrasar o caminho para o mar do absoluto esquecimento, seguirei por essa vereda...

3.5.06

Há dias...

«Enfim nestes cansados pensamentos,
Passo esta vida vã que sempre dura.»
Camões
Há dias em que, obliquamente, o desassossego alastra: as máquinas continuam no subsolo a molestar os cérebros imaturos. Impunes! Inexoráveis!...As máquinas?
E as incertezas avolumam-se, não no horizonte pessoano, mas, aqui, na soleira da porta, na valeta do caminho...
As agulhas acastelam-se em penumbra antecipada...
Todavia, ali, na Rua Tomás Ribeiro - o célebre autor do obliterado D. Jaime ou a Dominação de Castela (1862) -, encontro três jovens, que ignoram quem foi Tomás Ribeiro, e indiferentes à invasão espanhola que as sitia, me perguntam se podemos considerar os nomes próprios como deícticos.
E eu, compensando uma manhã de desânimo, respondi-lhes que sim, que os nomes próprios são indicadores, nos situam, individualizam, expressam o tipo de relação que mantemos com o Outro, quando lhe sabemos o nome próprio...
E Tomás Ribeiro, Fontes Pereira de Melo, José Fontana, Ventura Terra, Luís de Camões... a que tipo de deícticos corresponderão?
Aquelas três jovens, porém, estavam pragmaticamente preocupadas em saber se ALMA era ou não um deíctico?
E as agullhas deslocam-se indecisamente...

1.5.06

A disponibilidade da caruma

Ao contrário do que parece, a caruma não se oferece nem se vende. Pode ser passenta, a uma escala que nada tem a ver com o tempo de cada ser humano; nem sempre é rasteira; pode ficar ficar suspensa, numa antecipação da queda germinal.
A disponibilidade opõe-se ao fastio, ao tédio, ao preconceito, à opinião; procura sentir hiponimicamente como faziam Almeida Garrett, Cesário Verde, Teixeira de Pascoaes, Alberto Caeiro, Sebastião da Gama, Jorge Barbosa...
A alteridade interessa-lhe porque pode ser uma fonte inesgotável de aprendizagem e, consequentemente de plenitude. Freud e Maquiavel eram reducionistas: defendiam que a plenitude se atingia através da posse, do domínio do outro. E baseavam-se na conquista ou no fracasso para explicar a historicidade do sujeito.
Esta caruma não está à espera nem lhe interessa ser utilizada, mesmo que isso aconteça a cada momento; não lhe interessa o poder de Freud ou de Maquiavel. O que procura é a incerta reintegração cósmica!
No entanto, essa reintegração, apesar da disponibilidade, parece bem longínqua como o reconhece o poeta da caboverdeana Claridade, Jorge Barbosa:
«Passei um momento no caminho que as flores enchiam de aromas,
que as árvores enchiam de sombra.
E o chão era fofo por causa das folhas caídas.
Mas o perfume não era para mim, nem a frescura da ramagem
Nem para os meus pés o tapete que as folhas deixavam.
Porque o meu caminho é um outro, mais duro e mais longo.»
E para trás ficou, entretanto, o mosteiro (a Arrábida) com o seu inconfundível altar no Outão, um altar de cimento. Curiosamente, «outão» pode significar «parte lateral de um edifício» ou «vento que vem do alto mar». Qualquer um dos significados convém, pois a Secil Outão produz anualmente mais de 2.000.000 toneladas de cimento cinzento que escoa por terra e por mar, já que também dispõe três cais acostáveis, dotados de meios autónomos de carga e descarga simultâneas.
E a esta hora, a própria caruma se interroga sobre o tipo de relação possível entre o altar da Arrábida e a ara da Secil Outão.
A interrogação é uma das expressões da disponibilidade. Abre. Enquanto que a resposta enclausura.