28.2.15

Falsas vítimas

«... a própria vítima deseja activamente o crime de que será vítima para que, como mártir, possa entrar no Paraíso e enviar o criminoso para o Inferno, onde arderá.» Fethi Beslama, La psychanalyse à l'épreuve de L'Islam, Paris, Aubier, 2002

Não é só Caim que deseja a morte, pois Abel participa ativamente nesse desejo, provocando Caim para que este o mate, para que também ele se liberte dos seus pecados. (Slavoj Zizek, Uma Vista de Olhos aos Arquivos do Islão)

É neste jogo que a Humanidade se deixou encerrar ao não ter resolvido o problema das linhagens, nascido da esterilidade de Sarai, esposa de Abraão, e da impulsividade da escrava Agar, que deu à luz Ismael, filho de Abraão.
A fixação nesse longínquo passado continua a assombrar os nossos dias... Ou, pelo menos, é pretexto para justificar, em nome de Alá / Jeová, as ideologias que só aparentemente são rivais, já que a morte de uma traria consigo a morte da outra...  

27.2.15

Tema adiado

Como ser justo poderia ser o tema deste apontamento. 
No entanto, o rei ordenou que se construísse um convento como agradecimento pela gravidez da rainha, e o romancista decide inventar um amor bestial, liberto de qualquer convenção e de qualquer precaução...
O rei, garanhão público, sentia-se humilhado pela esterilidade da austríaca...e esta, afogada em percevejos reais, só ao confessor poderia dizer a verdadeira causa do desconchavo - o que a História estabeleceu, devido ao segredo da confissão, acabou por não transpirar para a história dos fracassos originais... A culpa é do romancista e de mais ninguém!
Quanto a mim, José Saramago foi injusto com a rainha, sempre cercada pelo cunhado, de seu nome Francisco, famoso marialva caçador de marujos...
E acima de tudo, José Saramago foi injusto com o maneta e com a caçadora de almas moribundas que, sem cortesia, se amavam em qualquer esteira ou monte de palha, sem que daí resultasse qualquer prole, a única riqueza dos pobres... E nem se pode acusá-los de não terem construído qualquer engenhoca: ambos trabalharam na construção da passarola, sem esquecer que Baltasar se cansou a empurrar a carreta... E como recompensa, Blimunda esgota-se como peregrina e o maneta apaga-se no fogo da Inquisição... ao lado de «um que fazia comédias de bonifrates e se chamava António José da Silva» que tanto deliciavam sua majestade D. João V, o Magnânimo...

Em conclusão, mesmo para escrever este apontamento, em que o tema foi adiado, foi necessário ter, um dia, lido o Memorial do Convento. Por mais que digam o contrário, ser justo exige que se seja capaz de distinguir o leitor do charlatão...

26.2.15

Livres de senhores

«O universalismo de uma sociedade liberal ocidental não reside no facto de os seus valores (direitos humanos, etc.) serem universais no sentido de se aplicarem a TODAS as culturas, mas num sentido muito mais radical: isto é, nessa sociedade os indivíduos relacionam-se consigo próprios como "universais", participam diretamente na dimensão universal, contornando a sua posição social particular.» Slavoj Zizek, O Islão é Charlie?, editora Objetiva, fev. 2015

Quem procura uma sociedade livre de senhores só pode incomodar! 
Uma sociedade feita de indivíduos que se relacionam como "universais" e não como extensões de culturas, subordinadas a valores religiosos ou laicos, é o que parece defender o filósofo esloveno, Slavoj Zizek...

A leitura da última reflexão deste filósofo é da maior atualidade, até pela sua natureza provocatória. Na perspetiva de Slavoj Zizek, a Filosofia não existe para dar respostas, mas sim para fazer as perguntas certas. 

25.2.15

Se pouco mais sou...

Não muito longe, há quem perfure e martele de forma descontinuada! Não digo que tal aconteça todos os dias, mas o batuque tende a ecoar sempre que alguém vem, a título cada vez menos definitivo, instalar-se num dos apartamentos vizinhos.
O Destino assim terá determinado e eu não possa fazer mais do que cumprir... Afinal, de que serve o meu desejo de calma se pouco mais sou do que «pedra na orla do canteiro"!
Impedido de desafiar o Fado, aceito, resigno-me e abdico estoicamente de qualquer gesto mais abrupto.
O problema é que o ruído não chega apenas ao entardecer. A (minha) Sorte dita que, logo pela manhã, eu inicie a via sacra do rumor. Assim é ao longo do dia até que a perfuradora e o martelo, de forma descontinuada, completem o ciclo. E mesmo quando adormeço, os meus sonhos misturam jovens estridentes com o martelar de sirenes apressadas...
Que pena que a Fortuna não tenha determinado que eu seja apenas uma «pedra na orla do canteiro"!

24.2.15

Em política, a semântica é uma batata...

Antes que seja tarde demais:
O facto da Troika ter sido renomeada “as Instituições”, o Memorando ter sido renomeado “Acordo” e os credores terem sido renomeados de “Parceiros” – da mesma forma que baptizando a carne de peixe – não altera a situação anterior.
Não podem mudar o voto do povo Grego nas eleições de 25 de Janeiro."

Manolo Clezos, deputado europeu grego opõe-se à decisão do seu partido - Syriza - de alargar o programa de assistência da zona euro.
Com 94 anos, Manolo já deveria ter aprendido que, em política, a semântica é uma batata e o povo bala para canhão.
E como tal, os Gregos (tal como os Portugueses!) ou comem batata ou servem de balas para canhão!
Que venha o diabo e escolha!
(...)
PS. Os Mexicanos bem tentaram matar os espanhóis dando-lhes a batata (tubérculo venenoso) a comer. Só que os espanhóis, através da cozedura do tubérculo, anularam-lhe o veneno. E assim se quebrou a "lógica" inicial...

23.2.15

No limiar

Antes do limiar, eu conhecera o portal e, em certos dias, apenas o postigo. As palavras podem parecer sinónimas, mas para mim nunca o foram. Cada uma retrata um certo tempo, desde logo perdido. Hoje, portal e postigo mais não são do que memória de espaços distintos, com maior ou menor abertura para o mundo, isto é, a rua... De pouco me serve recordá-los - quem lá habitou já lá não mora...
De momento, vivo no limiar. Por enquanto, porque há momentos tão intensos que temo que a corda parta...
Na verdade, vivemos sempre no limiar, só que o não sabemos.




22.2.15

Meus pensamentos

"São coisas vestindo nadas,
Pós remoinhando nas portas
Das casas abandonadas."
Fernando Pessoa

Ontem, atribui inadvertidamente a Ricardo Reis um poema de Pessoa ortónimo. Diga-se que ninguém protestou, talvez por comiseração... A verdade é que me deixei embalar pela sintaxe!
(...)
Se o Poeta reconhece que o seu pensamento se corporiza apesar da sua nudez, se reconhece que o seu pensamento mais não é do que poeira do deserto, ultimamente, o meu pensamento não para de me trair como se apenas sobrasse um corpo donde ele se quisesse ausentar definitivamente.

E talvez não fosse má ideia!

21.2.15

Passemos à frente

Boiam leves, desatentos,
Meus pensamentos de mágoa,
Como, no sono dos ventos,
As algas, cabelos lentos
Do corpo morto das águas.

Boiam como folhas mortas
à tona de águas paradas.
(..)
Fernando Pessoa 

Caruma já se ocupou várias vezes da COMPARAÇÃO, explicitando que ela exige dois termos. E sobretudo que o segundo termo é concreto (arrancado à vivência do autor), visando explicitar uma realidade não palpável, abstrata.

Comparações: Meus pensamentos de mágoa / boiam /como as algas // boiam como folhas mortas /... 

Inacreditavelmente, muitos alunos do 12º ano confundem a comparação com a metáfora, embora não saibam explicar a analogia mental que suporta a segunda. 
Afinal, o que será uma analogia? Será o mesmo que uma comparação? 

Por outro lado, na sequência / Meus pensamentos de mágoa, / Como, no sono dos ventos /As algas, cabelos lentos..., muitos alunos do 12º ano ignoram a VÍRGULA... concluindo que «no sono dos ventos» é o 2º termo da comparação. 
Afinal, qual é a função da vírgula?

Ler Fernando Pessoa exige particular atenção à construção sintática de matriz latina, num tempo em que o Latim foi desprezado. Segundo a orientação didática em uso nas nossas Casas de Letras, o melhor é passar à frente: o importante é procurar a "permeabilidade" entre os textos (versão eufemística da intertextualidade), desvalorizando a interpretação, reservada a hermenêutas.

20.2.15

Dá pena!

Chegam atrasados e sentam-se como se nada estivesse a acontecer. Dois dedos de conversa à direita e à esquerda... e sorriem ou, em alternativa, adormecem. 
Dá pena vê-los assim ora tão desempoeirados ora tão anestesiados. Quando interpelados, mostram-se seguros das suas convicções, chegando, por vezes, a levantar a voz...
(..)
A causa primeira reside na falta de objetivos bem definidos e calendarizados. Como explicação, confessam que ainda não descobriram a vocação. Mas, na verdade, a única vocação que lhes descubro é a da vida fácil... tão fácil que nem o "carpe diem" de Ricardo Reis lhes desperta especial atenção.

19.2.15

Ler Fernando Pessoa

O vento sopra agreste e eu sinto o frio, o que me permite pensar que, apesar do sol ser fonte de calor, circunstâncias há em que devemos, a todo o custo, evitar os passeios sombrios...pois o meu pensamento é totalmente ineficaz se os meus sentidos estiverem desativados.
Esta parece ser uma ideia simples que não autoriza qualquer dissociação do Sentir e do Pensar, ao contrário do que defendem muitos leitores de Fernando Pessoa.
Na verdade, Fernando Pessoa limitou-se a condenar todos aqueles que viviam de ideias que não tinham origem nos sentidos. Ideias mistificadoras e que traziam infelicidade, desnaturalizavam e descorporizavam cada ser humano - já que a humanidade não passa de um mito simplista, mas demolidor.
Cada heterónimo é expressão de um pensamento enraizado em sensações, mesmo que hipoteticamente excessivas ou demasiado ensimesmadas...
Ler Fernando Pessoa é, antes de mais, evitar os passeios sombrios...

18.2.15

As palavras soltam-se...

As palavras soltam-se e arrastam consigo mil e uma histórias. Na maioria dos casos, não há evento, há apenas a necessidade de ligar palavras, cores, objetos, reminiscências, memórias reinventadas. Claro que Alice acredita que se trata de recordações e, nessa matéria, ninguém a pode contrariar. 
E para quê contrariá-la? O passado é uma fonte inesgotável e, apesar de tudo, agradável se comparado com o presente.
No presente, os demónios soltam-se em línguas de fogo, prontos a imolar todo aquele que defenda uma ideia diferente, todo aquele que ouse replicar...
A réplica só traz fúria. Uma fúria antiquíssima!
Quanto às histórias de Alice, é pena que ela não as passe ao papel. Seriam divertidas e fariam bem à saúde...

17.2.15

O pelourinho de Kierkegaard

 Um pelourinho mesmo por cima dum fontanário! 
Aqui, nada se perde. Neste cenário, o exposto podia ser supliciado, deixando-o morrer à sede. Ou, em alternativa, o sangue do supliciado poderia cair diretamente na fonte, servindo de alimento aos filhos da noite.
Pena é que, com tantos vampiros à solta por esta austera Europa, o pelourinho mais não sirva do que para alvo fotográfico!
(…) Entretanto, acabei de ler O Banquete, de Kierkegaard, e se bem o compreendi, deveria tê-lo lido aos vinte anos.
Já lá vai o tempo em que fui “mancebo”. Também nunca entendi a mulher como “facécia”, e embora pudesse ter acompanhado o pensamento do Eremita, tenho dificuldade em aceitar a opção da mulher-escrava. Para alfaiate-eunuco nunca tive queda, sobretudo para aceitar a tirania da moda. Finalmente, o imperativo categórico do Sedutor pode ser aliciante, mas acaba por se tornar ridículo com a idade… e porque, para além de tudo o mais, reduz a mulher à categoria de “objeto”… 

16.2.15

Em Óbidos…



Em Óbidos, tudo pode acontecer: turismo rural junto ao Castelo e, sobretudo, a Igreja de Santiago transformada em Livraria! Pode ser que resulte, mas o culto do sagrado já teve melhores dias. Tal como eu: entrei e nada comprei!

A vila está apelativa, só que os turistas andam tesos e apressados. Ou será ilusão minha?

15.2.15

Ir a Óbidos no Domingo de Carnaval

Ir a Óbidos no Domingo de Carnaval é como mergulhar numa romaria medieval...
À entrada do burgo, os autocarros libertam centenas de romeiros, sequiosos de ginja, e que fazem da rua Direita a sua via sacra... Sorumbáticos, avançam e só sorriem quando se cruzam com alguma marafona. Na verdade, têm o tempo contado: a vida a sério está prometida mais para Sul. E antes de chegar a Torres Vedras, é necessário dar conta das marmitas e dos garrafões, condição necessária para esquecer as mágoas e libertar as grilhetas da seriedade...
Para trás, fica outro tempo: o tempo de outrora que é possível reencontrar no Museu - um tempo renascentista e maneirista, demasiado sagrado para a quadra carnavalesca...
Talvez na Páscoa, alguns dos romeiros entrem no Museu de Óbidos! A entrada é gratuita. Pode ser que, nessa altura, ofereçam uma ginjinha...
Visitação

14.2.15

O brilho difuso

O brilho difuso é o que sobra da nitidez. Ainda o arame farpado não tinha sido rasgado e já as cadeiras se dispersavam sob a calma estonteante do estio...
Os lugares de inverno sopram-nos para fora das ruas e deixam-nos presos à beira do arame farpado: há monólogos, tristes, sob lâmpadas fúnebres e, de tempo a tempo, um carro acelera... o movimento cresce, mas desaparece. 
Estamos à espera da nitidez das horas. Os olhos apagam-se e os ouvidos, inquietos, despertam. Por enquanto ainda há ruído. Mas até esse já começa a desesperar...
E depois há aquela vontade de desacertar os minutos, como se estes se deixassem enganar.
  

13.2.15

Passaram 50 anos!


Passaram 50 anos!
Em 1965, não creio que tenha sabido da ignomínia. Nem me lembro do momento em que terei tomado conhecimento. Vivia num espaço fechado onde a política não fazia parte da formação do adolescente. Só mais tarde, aprendi de cor a Constituição do Estado Novo e me alertaram para "os males" da Constituição de 1911 - os males republicanos, laicos, democráticos ou seriam outros?
A verdade é que hoje a Constituição democrática não é ensinada nas escolas nem os jovens são alertados para os males "corporativos, nacionalistas colonialistas..." da Constituição do Estado Novo.
De vez em quando, a grei de cada época lembra-se de colocar umas lápides e de baptizar uns tantos lugares com o nome das vítimas dos regimes, como se desse modo cumprisse o dever de formar gerações responsáveis e empreendedoras...

12.2.15

Nada dizer...

O tema de hoje é nada dizer ou, melhor, é evitar responder. A escrita corre por dentro, secando, a cada instante, a madeira do significante...
A madeira é de figueira, arde e não aquece... e o frio reaparece. E também o frio corre por dentro, secando a alma...
Nada dizer, nada escrever, esperar que o chicote das palavras emudeça...
Nada dizer... 

11.2.15

É apenas como o falar alto de quem lê...

Não tomando nada a sério, nem considerando que nos fosse dada, por certa, outra realidade que não as nossas sensações, nelas nos abrigamos, e a elas exploramos como a grandes países desconhecidos. E, se nos empregamos assiduamente, não só na contemplação estética mas também na expressão dos seus modos e resultados, é que a prosa ou o verso que escrevemos, destituídos de vontade de querer convencer o alheio entendimento ou mover a alheia vontade, é apenas como o falar alto de quem lê, feito para dar plena objectividade ao prazer subjectivo da leitura.
                Bernardo Soares

(Escola Secundária de Camões, 11.2.2015, às 17 horas, na Sala do Conselho)


O Clube LER PARA VIVER está de parabéns! 
Levou a cabo mais uma iniciativa de leitura pública, desta vez, tendo como fio condutor o verso de Fernando Pessoa / Alberto Caeiro, PELO TEJO VAI-SE PARA O MUNDO.
Sabemos, no entanto, que Caeiro prefere estar, a partir:
(...)
Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.

O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.

Como diria Bernardo Soares, a prosa e o verso só não se anulam porque é deles que se nutre o prazer subjetivo da leitura, o que me leva a pensar que, para os membros do Clube, a verdadeira fruição, mais do que no trabalho coletivo apresentado, está no tempo de preparação do evento: na descoberta do movimento, do gesto, da cor e do som das águas subterrâneas em que os poetas habitam...

Entretanto, "o vermelho anoiteceu", terá sentido Álvaro de Campos. E talvez porque a noite, frequentemente, chega mais cedo, começo a pensar que o Clube LER para VIVER poderá ainda ter mais sucesso se, em vez de partir do Tejo, partir da ESCRITA como suporte de VIDA... mesmo quando a memória falha... 
Mas essa é a Vida de Alice...

10.2.15

Parece que há cada vez mais corvos

Parece que há cada vez mais corvos e, sobretudo, corvos juvenis. Não estranho, pois se há cada vez mais lixo, se este país está classificado como lixo, se a educação foi lançada ao caixote de lixo, se já só é possível encontrar trabalho nas lixeiras dos outros... A única especialização que parece fazer sentido é a da gestão do lixo coletivo - e essa tarefa está reservada aos políticos, saídos de institutos politécnicos (e outros) e de universidades de vão de escada...

Se há cada vez mais corvos é porque as ciências da morte estão em expansão - outrora, ciências humanas e da saúde...

De facto, o número de corvos juvenis cresce a cada dia que passa; todavia não os podemos acusar de nada, pois eles limitam-se a limpar a porcaria que vamos deixando passar sob os olhos baços...

9.2.15

O mundo de Alice

Apesar do domínio dos jogos de linguagem e do precioso contributo dos novos auxiliares de memória, Alice mergulha progressivamente numa memória recôndita, feita de imagens de lugares e de pessoas distantes... 
Alice é culta e inteligente, pensa saber o que quer e até onde pode chegar, mas a gramática da doença não obedece ao controlo da consciência... 
As novas leis são bem distintas, pondo à prova o espírito geométrico que habita Alice. Indefesa, ela vai ficando cada vez mais dependente e, sobretudo, à deriva. Mas luta!
(...)
A personagem parece dar conta da realidade, mas creio que não o consegue. Não consegue dar conta da mudez intermitente, do olhar vazio, da sobreposição dos lugares, dos rostos trocados, da irritabilidade desesperada, da incomunicabilidade, da morte antecipada... Não dá conta de todos aqueles que não lutam ou não podem lutar, de todos aqueles que acabam totalmente sós...

8.2.15

Hoje, O meu nome é Alice


Hoje, O meu nome é Alice, comovente filme sobre uma doença que em nada me é indiferente. Julianne Moore representa com extraordinário realismo a progressiva perda de referências de uma doente de  alzheimer...
É um daqueles filmes que me incomoda profundamente, talvez porque me serve de espelho, ao revelar-me que as lacunas, os lapsos e as perturbações de linguagem mais não são do que sinais de envelhecimento precoce... e que envergonham porque aos olhos dos outros são manifestações ridículas...

7.2.15

Contrariamente ao que foi publicado, Caruma nunca leu Fernando Pessoa

Kierkegaard construía personagens que, no final das contas, se mostravam eles mesmos personagens criados por outros personagens, e que precisamente haviam sido criados com o intuito de tanto confundir o leitor, fazendo com que este se pusesse a pensar por si mesmo, a escolher por si mesmo, quanto fazê-lo pensar sobre a existência, sobre os perigos e questões relacionados à existência.
                                       Unamuno entre Pessoa e Kierkegaard, Gabriel Guedes Rossatti

Caruma, por entre o frio, decidiu sair de casa e caminhar para dar cumprimento à ordem do Patrão, que só poderá viver um pouco mais se fizer exercício e reduzir o consumo de gorduras e de açucares.
A vontade de Caruma era reduzida, mas, entretanto, recebera o encargo de Alma que acredita piamente que a hipotermia se cura com recurso a muitas gorduras e, sobretudo, açucares.
Solidária, Caruma partiu à procura das vitualhas, entrando sucessivamente em quatro pastelarias até que conseguiu, finalmente, encontrar os queques desejados, revestidos de nozes e pinhões...
Cumprido o desejo de Alma, Caruma olhou o relógio e percebeu que gastara uma hora... Uma hora de marcha, ora acelerada ora lenta. Talvez o Patrão tivesse ganho mais uns segundos de vida...
Enquanto as agulhas cumpriam a missão principal, a carqueja ocupava-se  do discurso do mancebo de O Banquete, de Kierkegaard. Na verdade, ocupava-se do modo como Kierkegaard poderia ter influenciado Fernando Pessoa na criação da heteronímia...
Entretanto, passo a passo, atravessou-se na imaginação Don Miguel Unamuno, trazido pela mão de Gabriel Guedes Rossatti...

6.2.15

Da "compra da cura e da vida" à "palestra motivacional"...

Tudo serve para fazer propaganda! 

O ministro da Saúde declara que, a propósito do combate à hepatite C, «estamos a comprar a cura e a vida»...
Álvaro de Campos que, no poema "Mestre, meu querido Mestre", dá o exemplo da "felicidade" do ser humano que, não da dele, ao, ousadamente,  transformar  um verbo intransitivo em transitivo e substituir os esperados hipónimos por hiperónimos, não teve a audácia de Paulo Macedo, ministro que é capaz,  com o dinheiro dos contribuintes, de comprar a cura e a vida.

Feliz o homem, marçano,
Que tem a sua tarefa quotidiana normal, tão leve ainda que pesada,
Que tem a sua vida usual,
Para quem o prazer é prazer e o recreio é recreio,
Que dorme sono,
Que come comida,
Que bebe bebida, e por isso tem alegria.

Tudo serve para fazer propaganda! 

Paulo Portas, ministro da propaganda, deu início a uma nova forma de persuasão: a palestra motivacional...

O vice-primeiro-ministro, Paulo Portas, pediu hoje aos cerca de 300 jovens que vão realizar estágios profissionais no estrangeiro, no âmbito do programa INOV Contacto, que sejam os embaixadores de Portugal e demonstrem que o país está em crescimento.

Dois exemplos para não cansar, porque o primeiro ministro, secretários e sectários estão no terreno para provar que a austeridade acabou, os gregos enlouqueceram... e a culpa, no dizer do ex-ministro da educação, David Justino, é de quem formou os professores...

Tudo serve para fazer propaganda! 
Até há quem faça propaganda por conta própria...

5.2.15

Definição

O revisionismo e o revivalismo, para além do saudosismo, sempre me fizeram questionar os seus intérpretes, mesmo que procure não os afrontar...
Dizer que há Platão ou Aristóteles nestas teclas surpreende mas não clarifica o pensamento, essa entidade metafísica que impõe uma coerência impraticável e, sobretudo, arrasta consigo fundamentalismos absurdos e mortíferos...
Talvez este seja o argumento daqueles que ousam rejeitar a Religião, a Filosofia, a Ciência e a Política - os Poetas. Cedo compreenderam que a visão global, a coerência total, a lei e os fundamentos matam todos os que rejeitam o unanimismo...

 ...apenas uma linha pontilhada em que os passos em falso abundam, o fio se quebra a todo o momento, e a gramática se despedaça, sem ilusão nem necessidade de enraizamento...

4.2.15

Apesar do Sol...

Apesar do Sol, o frio entranha-se nos ossos e só a impressão esclarece a asneira que resulta da preguiça  da colagem apressada e preguiçosa... o erro poderia ser humilhante e desaguar naquele reino onde vêm caindo os arrivistas que nos desgovernam...
«As matemáticas do ser», entretanto, despertaram-me para a evidência de que o TER  substituiu o SER sem qualquer pejo - a Vida pouco ou nada vale a não ser para a notícia que, ao deixar de o ser, passa a objeto de propaganda indecorosa...
Apesar do Sol, o frio traz com ele a Morte, aliviando as finanças públicas e deixando um rasto de alegria nos rostos sorumbáticos que nos desgovernam...
Apesar do sol, amanhã vou estar atento às cabras que continuam a retouçar à minha volta...
(...)
Apesar do sol, agora é a lâmpada eléctrica que ilumina o tic-tac... o tic-tac, indiferente ao frio e aos ossos, indiferente ao ter e ao ser, indiferente à vida e à morte... indiferente à distante Brogueira onde nasceste para um destino que, apesar do Sol, não cumpriste...
... Mas há quem nos queira convencer do contrário. Paciência!  

3.2.15

Quem hoje ficou a remascar fui eu...

Na adolescência, acostumei-me a observar as cabras que, fosse no pasto ou no curral, não paravam de trincar. Baixavam a cabeça, abocanhavam, por exemplo, uma ramo de oliveira, e ficavam horas a triturá-lo e a ruminar.
Que me lembre, nunca deram pela minha presença. Olímpicas, cumpriam os dias e as noites e ponto final.
(...) 
Algo hoje despertou em mim esta memória antiga, mas quem hoje ficou a remascar fui eu, pois ainda não perdi de todo o decoro...

2.2.15

Eu místico à força...

Tu, místico, vês uma significação em todas as coisas
Para ti tudo tem um sentido velado.
Há uma coisa oculta em cada coisa que vês.
O que vês, vê-lo sempre para veres outra coisa.
Para mim, graças a ter olhos só para ver,
Eu vejo ausência de significação em todas as coisas;
Vejo-o e amo-me, porque ser uma coisa é não significar nada.
Ser uma coisa é não ser suscetível de interpretação.
Alberto Caeiro

Que bom se eu conseguisse ser apenas uma coisa!
Eu que fui educado como místico, apesar de contrariado, passos os dias a interpretar textos, comportamentos, pessoas... e quase que não dou atenção às coisas...
Melhor seria se ocupasse os dias só a ver, até porque, ao ouvir, não resisto a discernir o Bem do Mal, como se eu pudesse contribuir para melhorar o imundo mundo em que habito...

Doravante, prometo (promessa mística!) que vou apenas descrever... e já é bastante!
(...)
Hoje, estava o papagaio verde e amarelo no seu poleiro e o pardal comia-lhe a ração. Para mim, a ração era do papagaio, mas para o pardal, o cereal era seu...
Para mim, o pardal afrontava o papagaio, mas o papagaio só parecia interessado nas duas garinas que se insultavam diante dele. E como é que eu sei que o papagaio estava interessado?
Vou ter que voltar ao início da descrição: hoje, no meu caminho vi uma pedra e fui obrigado a desviar-me... O que é que aquela pedra fazia no meu caminho? Quem é que a lá pôs?...
Em princípio, a pedra é uma coisa que existe para que eu a veja e para que eu possa desviar-me dela. Mas será só isso? 


1.2.15

O muro e a enxurrada

Há quem construa muros e quem sinta necessidade de os demolir ou, pelo menos, de os deixar ruir. Com ou sem razão, a evidência impõe dois lados para que possamos lastimar que a VIDA more do lado de lá.
Só quando o sono acontece, entramos nesse reino de ternura e de fartura... Infelizmente, o sono rareia e por isso procuramos a passagem seja através do verbo seja através da droga, autorizada ou não, pouco importa!

Ultimamente, o verbo tem nos anunciado uma nova realidade mágica e farta. As praças enchem-se de virtuosos da palavra, prontos, a num ápice, deitar abaixo o muro da tirania. Já não há tempo para o deixar ruir...

O problema é que este verbo é como a droga: não sabe que vencido o dique logo surge a enxurrada.