21.8.14

Abílio Jorge Cosme (iiiii)

XXIII

Vi no azul eterno do teu olhar
Quanto padece quem vive tristonho,
Quantas folhas do diário deve molhar
Pelas mágoas incapacitadas do teu sonho.

Vi no azul eterno dos teus olhos
Quanta sombra invade o teu jardim,
Quantos barcos naufragam quantos escolhos,
Quantos dias negros quantas noites sem fim.

Na tua canção até a melancolia era doce,
Embalando meu ser que já não resistia
E até ser dia, abraçámo-nos e chorou-se .

Abençoada ternura que não pede por desgosto,
Tua alma isolou a beleza da dor que existia
Naquela gota de eternidade caindo pelo meu rosto.

XXIV

Vesti-me para te amar,
Mas a traição vestiu-se primeiro;
Tudo ficou vago como o mar
E o meu ser não tem paradeiro.

Corre à procura do porquê.
Morre aos olhos de quem o vê;
É pesadelo aquilo que sonhou.

Não há trevas que o escondam
E nem as verdades que o sondam
Mostram a realidade que o apanhou.

Dispo-me do corpo adolescente,
Quero voltar a ter esperança;
Meu ser quer volver à nascente,
Ser semente ávida de mudança.

Tu foste a mensagem cruel selada a lacre
Que eu, ingénuo e convidativo, solicitei.
O que torna a minha vida acre
É esta inocência com que te acreditei.

XXV

O meu coração padeceu por mil
Em todas as batalhas sem dó,
Ergueu um muro de betão e aço,
Procurou um abraço mas teve-se só.

O meu coração padeceu por mil
Por todos os destinos que se separaram,
Procurou almas que se unissem em conforto,
Mas meu ser está morto nos olhos que cegaram.

No infortúnio deste mundo vil
Encontrei agora a paz derradeira
Para o meu coração que padeceu por mil.

Leguei a um forte talismã a sorte
De padecer por mil uma dor verdadeira;
E eu, já livre, ergui-me àquela morte.

XXVI

Quem da vida aproveita
Todo o seguro que se lhe ofereça
Merece a alma de uma colheita
Que, depois de feita, ainda amanheça.

XXVII

Abençoada solidão
Que me lega a doutrina
Onde me revelo a imensidão
Que a unidade imagina.

Nem religião nem crença
Explicam o que eu sinto;
Meu ser humilde pensa
Com um coração distinto.

Qual é a força que elege
O sentimento mais puro,
E o destina e protege
Até que singre maturo?

Dispo uma estrela do céu
Da distância que nos separa:
O firmamento também sou eu
despido da minha cara.

Do universo, a única visão
Que atinge o infinito
É que meu corpo é, sem divisão.
A totalidade do que eu acredito.

É aqui que eu estou só, sendo pleno
Tomara ter outra vez um metro e oitenta,
Estou certo que cego estaria mais sereno
Mas esta é a solidão que meu ser inventa.

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