28.2.14

Os dois poderes



Castro Verde. Apenas funcionários municipais e eclesiásticos… servos do mesmo deus! Neste caso, D. João V deu uma ajuda com a Basílica Real, apesar desta servir para que sua majestade pudesse ser adorada... À sexta-feira, o movimento é reduzido.
Em silêncio, os mitos fundadores: D. Afonso Henriques e o milagre de Ourique.

27.2.14

Ideias... boas, más!

As ideias não são boas nem más!
Há ideias que trazem paz e outras, sangue...
Entre ambas, pouco há a dizer.
O Poeta, no entanto, em tempo de abulia, lá ia recitando: «Nem paz nem guerra / nem lei...»
O resto é Disputa!

25.2.14

Ofuscados

Há quem teça para se esconder, apenas a paisagem espera que taciturnos figurantes a atravessem. Sob o arco, de costas para as colunas, os olhos ofuscados adivinham a forma da muralha alcandorada num tapete verde que, do lado invisível, se precipita para o mar adiado... 
O arco pode ser do triunfo e ter sido construído para celebrar a chegada de joaquina e joão. O Povo apinhado, olhos ofuscados pelo esplendor não deixaria de celebrar as vestes reais.
Na retina, grupos juvenis, sentados no empedrado, ainda procuram sob a moldura os dourados que descem do sol e, por momentos, fica a sensação de que no lugar do carvão deveria estar o ouro ou a lágrima da moura expulsa da alcáçova...
Não muito longe, a torre sineira, sem cabaça, dá notícia da masmorra... e eu deixo de fora uma mão que vai afagando os pés de algum transeunte inseguro, mesmo que possa acabar exposto no pelourinho fronteiriço à gula da real. 
Perante a prosápia que hoje tive que suportar, nem o marquês nem maria, nem joão nem joaquina, com ou sem bigode, serão capazes de me fazer descrever a viagem do maestro ao volante de um fulminante chevrolet...

24.2.14

Bem-vindos à plastisfera do Teste intermédio

Ao contrário da caruma, o plástico não é biodegradável. Aos poucos, o planeta vai sendo plastificado e a caruma mais não é que acendalha involuntária. 
Na pessoana ilha extrema do sul ainda haveria caruma, apesar do poeta, cedo, ter prescindido do leito vegetal em que os amantes saboreariam o leite de coco... Em Pessoa, o amor é antecipadamente plastificado... e nem o luar o pode alegrar nem atear.
Já para o Príncipe dos Poetas não se podia viver que, a todo o momento, lhe podiam furtar a esteira, a escrava, a pena e o tinteiro, sem esquecer a própria vida... O que ele mais temia era o céu sereno, isto é, plastificado, porque a sua impassibilidade escondia a perfídia que lhe roubaria a amada e a deitaria ao abismo.
Quanto ao imperador da língua portuguesa, ao plástico preferia o cartão! As naus da Índia, da Soberba, da Vingança, da Cobiça e da Sensualidade jazem num mar de sargaços...

Da alegoria fingida, os autores do Teste Intermédio não quiseram ver o que se esconde por baixo do terraço e por isso eliminaram a Nau da Cobiça e a Nau da Sensualidade. Eliminaram as figuras de autoridade e mataram a competência argumentativa de Vieira... talvez porque pensassem recuperá-la no Grupo III: « Defenda um ponto de vista pessoal sobre o papel que a palavra pode assumir no mundo atual.»
- Um belo exemplo de enunciado plastificado!

  

23.2.14

"Individadamento" e autofagia

«... e os bonitos, ou os que querem parecer, todos esfaimados aos trapos; e ali ficam engasgados e presos, com dívidas de um ano para outro ano e de uma safra para outra safra, e lá vai a vida.» Padre António Vieira
Pouco interessa o século, pouco interessa o Sermão! No essencial, nada muda na exploração, na vaidade e na dívida. Para evitar males maiores, já deveria ter sido criada uma disciplina que ensinasse a história da dívida aos jovens deste país. E, assim, já estariam familiarizados com o campo lexical da dívida, evitando erros desagradáveis, porque o erro não resulta apenas de disléxica teimosia, interna desatenção, rebaixamento social...
Apesar da dívida ser tema nacional, alguns dos meus alunos preferem escrever "individados" a endividados. E temo que, um dia destes, os novos gramáticos, se tal categoria ainda sobrevive, legitime, após aturada análise estatística, a opção "individados". Explicá-la-ão como resultado de um processo fonológico de assimilação completa, pois terá obedecido à lei do menor esforço e, sobretudo, a um ato de autofagia...

22.2.14

CARUMA deveria extinguir-se hoje!

CARUMA deveria extinguir-se hoje!
Em 2005, a caruma era tapete para a autocaravana que iria acompanhar-me na reforma logo que chegasse aos 36 anos de serviço efetivo. Em 2005, ainda parecia possível viajar, conhecer os lugares mais recônditos, aproveitar a vida antes que ela desfalecesse...
Só que ainda em 2005, tudo começou a mudar para pior. As leis tornaram-se voláteis, colocando-se ao serviço do oportunismo político do momento. De lá para cá, a remuneração não parou de diminuir, os preços dos combustíveis e das portagens não pararam de aumentar. As regras da aposentação deram paulatinamente lugar a novas regras: o cálculo do valor da reforma foi mudando e valor a auferir diminuindo sob o ditact da TROIKA.
Entretanto, a autocaravana foi-se imobilizando e tornou-se  uma fonte de prejuízo, facto que retirou a caruma de cena... agora já era só asfalto.
Assim, no dia em que Passos Coelho vê um futuro radioso, a autocaravana partiu, e eu vejo-me obrigado a antecipar a reforma, com a penalização que os políticos do momento decidirem... O problema é que a Nau vai cheia de desiludidos como eu!

Doravante Caruma continuará, mas sem chama... 

21.2.14

Praxistas mamões

«Cortámos aos que têm mais para poupar os que têm menos!» O democrata Passos Coelho dixit.

O princípio parece correto, cristão e até social-democrata, agora que a social democracia quer voltar a esconder o partido popular democrático...
O princípio também parece decorrer da doutrina social da igreja e até o papa franciscano não lhe poderá ser indiferente!
O problema é que o corte é cego e repete-se duas a três vezes ao ano, sem dar conta que, entretanto, muitos dos que tinham mais passaram a ter menos e que alguns dos que pareciam ter menos têm agora mais e, principalmente, que há uns tantos que passaram a ter muitíssimo mais. 

O termo MAMÃO não é muito elegante, mas serve para designar dois grupos fraternos que se têm multiplicado à sombra da social democracia - o dos que não param de mamar e o dos parvos.

De qualquer modo,  a simples ideia de que  governar é cortar a torto e a direito só pode pertencer a alguém que nunca percebeu o ideário social democrata ou a doutrina social da igreja. 

Enfim, estamos a ser governados por praxistas mamões! Só resta saber se sado-masoquistas, se ressabiados... 

20.2.14

Em tempo de avaliação externa

Ainda antes de confirmar que o FMI segue cartilha diferente da do Governo, comecei o dia a pensar em situações de dissonância.
Por exemplo, na capital portuguesa, há uma escola secundária que, em certos dias, quer ser básica, mas que, na verdade, se considera liceu.
Uma escola que acaba de recuperar o ESCUDO em tempo de EURO e que se prepara para continuar a substituir as janelas da fachada quando as fissuras se escancaram...
Uma escola onde há plátanos decíduos que impõem trabalhos forçados a funcionárias mal remuneradas...
Uma escola onde há avenidas de tílias, galerias sob beirais maltratados... uma escola onde a figueira de judas se esconde lá para os lados da horta ou será do horto?
Nesta escola que, orgulhosamente se considera liceu, há música nos intervalos e nos salões. E nas altas estantes há livros que ninguém folheia. E também  há alunas e alunos foliões e professores reduzidos a tostões...

Alheias a tudo, chegam as vassouras com a missão de desenhar uma saída limpa para a nação, e nós lá vamos dando uma mãozinha e dobrando a espinha.

19.2.14

Para todos

«Para todos a entrada na vida é a mesma, e a partida semelhante.» Palavras de Salomão

Escuto palavras arrogantes. Assisto a decisões unilaterais. Observo juízos viciosos. E penso se haverá alguma razoabilidade em tais comportamentos... 
Não tenho heróis, não sigo doutrinas, nem conheço a origem da inteligência. Desconfio, no entanto, que a luz nos cega de tal modo que preferimos a soberba à paciência, a vaidade à modéstia, a palavra ao silêncio...
Enlameados, esquecemos que a porta que atravessámos uma vez é a mesma a que regressaremos. Mas quando tal acontece, nada resta da soberba, da vaidade e da palavra...

Já não me oiço, a luz entra pela porta... e lembro que pensara escrever sob Job. Todavia, desisti de Job temendo que o Senhor lhe premiasse a paciência e, sobretudo, a autenticidade das suas palavras, pois não custa ser genuíno quando a Sabedoria nos põe de sobreaviso.  

18.2.14

As minhocas

Quando os campos estão alagados e o sol começa a aquecer, do torrão saltam, à má fé, as minhocas.
Sem crânio nem coluna vertebral, as minhocas avançam sorrateiramente. Relembro-as, longilíneas, onduladas e rosadas. Nunca percebi bem o que é que elas demandam. Sei, no entanto que, na sua teimosia, não se importam de ser esmagadas.
Diria, assim, que para as minhocas o problema da duração não se coloca. Satisfazem-se com a sua extensão, indiferentes aos vertebrados que ousam pensar e não se deixam conduzir por caprichos alucinatórios.

17.2.14

Salomão, vítima de um pregador anacrónico

«  Salomão prestou culto a Astarté, deusa dos sidónios, e a Melcom, idolo dos amonitas. Fez mal aos olhos do Senhor e não Lhe foi inteiramente fiel como seu pai David. Por esse tempo edificou Salomão sobre o monte, que está frente a Jerusalém, um lugar alto (templo) a Camos, deus de Moab, e a Moloc, abominação dos amonitas. E o mesmo fez para agradar a todas as suas mulheres estrangeiras, que queimavam incenso e sacrificavam aos deuses. Então o Senhor irritou-se contra Salomão...» Primeiro Livro dos Reis

Estranha citação, mas necessária! 
Há dias entrei num templo cristão, católico, acabando por ouvir o pregador a condenar o rei Salomão por ter prestado culto aos ídolos estrangeiros. Habituado a venerar o Rei Salomão como sábio, justiceiro e grande arquiteto, fiquei inquieto com a condenação.
Já me era difícil imaginar que o Padre Eterno acusasse de devassidão as 700 esposas de sangue real e as 300 concubinas do Rei  - «e as mulheres perverteram o seu coração», quanto mais vê-Lo, sem qualquer rebuço, condenar Salomão só porque este era cortês com os reinos que subjugava, com as princesas que lhe enchiam o harém...
Em pleno século XXI, não é fácil ouvir pregar uma história xenófoba, machista e sem qualquer noção do espírito comunitário salomónico.
Ainda se o Senhor tivesse acusado Salomão de esbanjador de recursos, de luxúria talvez aquela homilia fizesse sentido. Assim não, até porque o Senhor, a propósito da edificação do Templo, lhe disse:
«Santifiquei esta casa que me construíste a fim de permanecer nela o Meu nome para sempre; os Meus olhos e o Meu coração estarão aí fixados perpetuamente.» 

16.2.14

Sob a canópia

De passagem pela exposição fotográfica ( de Ana Gaiaz e Márcia Lessa) realizada no âmbito do Programa de Renovação do Grande Auditório ( 15 de fevereiro a 2 de março), houve uma série de pormenores que despertaram a minha atenção, a começar pelo nome das fotógrafas. Algo me diz que há quem não goste dos patronímicos...
Por outro lado, na memória descritiva, surge o neologismo "canópia" para designar a "cobertura" ou a "abóbada" do Grande Auditório. Provavelmente,  não estou atualizado!  Parece-me que, também, aqui, a língua materna se vê afastada sem grande motivo. A ideia de que sem a língua inglesa não somos ninguém perturba-me, pois habituado fui a pensar que a identidade se exprime melhor na língua materna...
Nada disto teria grande significado para mim se o Dicionário Terminológico do Português não sofresse dos mesmos males: a origem e a história da língua são substituídos pelo modelo anglo-saxónico por quem há cerca de 40 anos eliminou os estudos clássicos e acabou por reduzir a quase nada as línguas novilatinas ou românicas...
E acrescento que também não gostei da exposição fotográfica: falta-lhe a sequência, apesar da datação. Parece que as fotógrafas chegaram já o estaleiro estava instalado e o espaço esventrado... 

15.2.14

40 anos de liberdade


Sem grilhetas, construímos retalhos bem elucidativos do caos mental que nos desgoverna. Oferecemos cravos, mas é o tojo que se dissemina. Corrompidos pelo poder e pelo euro, semeamos a miséria nos campos e nas cidades…
Em nome de falsas autonomias, gerimos a nosso belo prazer e propagandeamos que as atuais gerações são mais cultas, mais instruídas do que as anteriores… Sem vergonha o repetimos na cara dos mais velhos, dos trabalhadores, dos que têm menores habilitações académicas…, discriminando em nome de uma verdade néscia e sem pudor.

14.2.14

Manda quem pode!

Manda quem pode, obedece quem quer!

Este provérbio é expressão do saber popular. Todavia, nos dias que correm, parece que já só aplicamos a primeira parte. Logo pela manhã, passou por mim, com ar desalentado, uma senhora que exclamava: Manda quem pode!

De facto, todos os dias obedecemos não porque queremos, mas porque nos resignamos….

Até na natureza, a figueira, de judas ou não, obedece, apesar da chuva e do dia de cinza. Esta figueira, porém, salta o muro e foge do terreiro do seminário, mesmo que a espere a mão gulosa e o riso mofino.

13.2.14

O polvo prega, comunga e condena à fogueira

I – O planeamento e a agricultura de mãos dadas! Não posso deixar de admirar a comunhão das malvas com as favas…
II – Entretanto, «o polvo vestiu-se de todas aquelas cores a que está apegado» e foi comungar. Será que se confessou?

III – «O polvo, com aquele seu capelo na cabeça parece um monge; com aqueles seus raios estendidos, parece uma estrela; com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura, a mesma mansidão. (…) O polvo é o maior traidor do mar.» Padre António Vieira, O Sermão de Santo António.
O polvo de Vieira é o dominicano que, morto D. João IV (1656), o persegue e o manda prender. O traidor dominicano, responsável pelo tribunal da Inquisição, que abraçou a Cristo e o prendeu…
Curiosamente,  tendo o Sermão de Santo António sido proferido no dia 13 de junho de 1654, os estudiosos de Vieira não identificam os pregadores que não salgavam a terra com a ordem dos dominicanos, cuja missão principal era pregar e, sobretudo, não veem no polvo o retrato do principal inimigo político de Vieira – o dominicano.
Provavelmente, no sermão pregado em 1654, no Maranhão,Vieira não terá feito qualquer referência à figura alegórica do polvo-traidor que só montou o auto-de-fé depois da morte de D. João IV. Apenas, quando estabeleceu o texto para publicação, Vieira terá introduzido «o salteador, que está de emboscada dentro do seu próprio engano…»

12.2.14

E para isso se matam todo o ano!

Todos a trabalhar toda a vida, ou na roça ou na cana, ou no engenho ou no tabacal; e este trabalho de toda a vida, quem o leva? Não o levam os coches, nem as liteiras, nem os cavalos, nem os escudeiros, nem os pajens, nem os lacaios, nem as tapeçarias, nem as pinturas, nem as baixelas, nem as jóias. Pois em que se vai e despende toda a vida? No triste farrapo com que saem à rua. E para isso se matam todo o ano! Padre António Vieira, Sermão de Santo António aos Peixes

No dia em que tomei conhecimento de um novo decreto-lei, o nº 22/2014, de 11 de fevereiro, que visa enquadrar e regulamentar a "formação contínua de professores" tive necessidade de explicar aos meus alunos que o Padre António Vieira utilizou o sermão para defender os moradores do Maranhão do apetite voraz dos "homens do mar", um insaciável apetite branco europeu. De forma lúcida, António Vieira denunciou a ação das ordens militares, fossem elas de malta, de avis, de cristo ou de santiago. Sem qualquer tibieza, Vieira denunciou a cultura de morte que caracterizou o espírito de cruzada e de posterior conquista do novo mundo. 
A permanente preocupação com as condições de vida do homem tornam Vieira um verdadeiro precursor de todos aqueles que se empenham na defesa dos direitos humanos.
Se me refiro ao decreto-lei 22/2014 de 11 de fevereiro e a Vieira é porque no ato governativo, subscrito por Nuno Crato e Passos Coelho, nada encontro que  possa ajudar os professores a educar os seus jovens alunos. Não é com burocracia, catecismo, manual de instruções, formadores de formadores ad hoc, sessões de três e seis horas, que se aprende, que se aprofunda o que há de essencial na cultura humana...
Se os governantes tivessem aprendido a ler o Padre António Vieira não haveria tanta ignorância, tanta cegueira, tanta vaidade, tanta cobiça... tanto homem «no triste farrapo com que saem à rua».
  

11.2.14

Um retrato patético

Para mim, não há inverno sem chuva ininterrupta. Hoje, sim, choveu de forma persistente, quase sem intervalos... O vento e o frio são apenas acessórios!
A chuva traz-me esperança de renovação, a vida no estado puro. Sempre que sinto a chuva, acredito que o mundo pode ser melhor, reduzir a fome, secar a guerra.
Bem sei que esta emoção só é partilhada por quem habita os desertos áridos, abandonados pelos rios exauridos pelo sol... e, no entanto, oiço com atenção todos aqueles que se queixam da chuva e têm pressa de libertar-se  dela, como se ela fosse  fonte de morte. Oiço-os sonhar com a areia da praia sob a canícula doirada e vou pensando como podemos ser mal agradecidos. Queremos a vida e vivemos na demanda da morte!
A ideia pode ser arguta, mas o que eu queria dizer era coisa diferente! É que, apesar da chuva, fonte de vida, sinto-me empurrado para a idiotia ou, em alternativa, para o silêncio absurdo. Suspeito de mim mesmo, vigio os meus gestos, peso as palavras e ainda peço desculpa pelo incómodo da minha presença. E já não preciso que me deem um empurrãozinho... Em dia de chuva, eis um retrato patético!

 (A nau da Governação leva a bordo Cila e Caríbdis, empurrada por uma multidão de patetas! O que será feito de Zeus?)     

10.2.14

A nau Governação

«Quantos, na nau Sensualidade, se iriam perder cegamente em Cila ou em Caríbdis, se a rémora da língua de Santo António os não contivesse (...)?» Padre António Vieira

Não é que a nau Sensualidade tenha deixado de ser um problema, mas o que hoje mais preocupa é a nau Governação.
À abordagem cognitiva, há quem prefira a abordagem alegórica, por isso convém esclarecer a interessante figura criada em torno de Caríbdis e de Cila.
Caríbdis e Cila revelaram-se inicialmente como ninfas, porém acabaram transformadas em vorazes monstros marinhos, zelosos defensores das fronteiras marítimas, deixando uma figueira negra ao homem como única escapatória.
Vale a pena relembrar que o monstro Cila, anteriormente ninfa, continua a apresentar o torso de uma bela mulher, cuja cintura é cingida por seis cabeças de serpente com três fileiras de dentes e por um círculo de doze mastins ...
Como a compreensão da alegoria exige a colaboração do interlocutor, abstenho-me de explicar quem vai na Nau da Governação, apesar de adiantar que Cila e Caríbdis, desta vez, se encontram a bordo... 

9.2.14

Tempestade mental

Acordei um pouco mais tarde, talvez porque tenha adormecido a pensar que Camilo Castelo Branco fora um homem pouco escrupuloso no que às mulheres respeita, apesar da glória literária de que ainda se alimenta. A glória pode, assim, alimentar-se da borracha que vai apagando a biografia, substituindo-a pela cristalização. O mito.
Hoje, a falta de escrúpulos generalizou-se e não há dique que a trave.
Entretanto, fui acometido por uma reflexão, até ao momento, inconsequente: a relação entre a sensação e o sentimento. Seguro de que a sensação não pede autorização para se instalar, sei, contudo, que ela é efémera, vaidosa, excessiva quando se proclama doce ou amarga, gélida ou em fogo. A sensação mais não é que paixão... e esta dura o tempo da sensação ou não sobrevive sem repetição.
Quanto ao sentimento, um pouco além da emoção, pode durar para além da sensação, pode viver da repetição e sobretudo da prisão voluntária ou não. E na verdade, o pensamento matinal embrenhou-se na duração do sentimento, no apagamento do sentimento, nas condições em que o sentimento desfalece...
E aí a morte do objeto e a cegueira progressiva do sujeito acabam por diluir o sentimento até à sensação de vazio que solicita que o lugar seja preenchido...

8.2.14

Mesmo se ao lado do risco…



Não penso (…) existo mesmo se ao lado do risco … Há um risco humano e outro vegetal, talvez apenas reflexo, não sei ao certo….
A incerteza escolhe a dúvida e eu não resisto a seguir-lhe o traço. Poderia inventar-lhe um passado, dar-lhe um sorriso, deixá-lo morrer, mas para quê? Nomes, praças, estátuas, pombas, gaivotas, esteiros – tanta história já narrada e esquecida!
E no meio relembro aquele impiedoso aluno que me questiona: – Para que diabo escolheu ser professor (executante de manuais) se poderia ter sido tanta outra coisa mais útil na vida?
O que o jovem ainda não sabe é que ao ter razão não irá gostar da minha resposta. E eu também não!

7.2.14

O risco



Eu não penso (…) existo enquanto não for riscado. Até lá, alimenta-me o risco lento da pena, só leve na página.

Por isso caminho, sem traçar um ponto de chegada – o objetivo. Evito chegar e perco-me ao não pensar no que poderei encontrar.

Basta-me a pena que ando a cumprir!

6.2.14

A lápis sempre com borracha ao lado

A lápis sempre com a borracha ao lado, em movimentos de avanço e de recuo, de sobe e desce, à procura da sequência, sob a forma de período ou de parágrafo, sem saber se a ideia se solta ou é feita refém... Sem plano, as palavras contíguas alinham esquecidas do paradigma que as vai libertando e limitando até ao momento em que eclodem ou, sem rumo, fenecem...
No entanto, não faltam as palavras tornadas sintagma. Repetem pessoas, objetos, fúrias estimadas; soltam-se em ondas encantadas, narcísicas; deslumbradas martelam embustes e libertam falsários...e eu vejo-as, em árvore, da raiz para o tronco que suporta a ramagem, mas, insatisfeito, desço abruptamente da ramagem à raiz...
e apago-as. Pego no lápis e regresso à sequência, deixando que o paradigma abra o leque e inunde a linha apesar do vento que sopra em bebedeira desnecessária...  

5.2.14

Lugar sem poesia

Enerva-me o refrão
da antevisão
da visão
ão...ão!
Sobe-me a tensão
da explicação
sem solução
ão...ão!
Mata-me a pretensão
da razão
sem razão
ão ...ão!

... Só me falta ficar
sem colchão
ão... ão!

Dito de outro modo: domus, dominus, domesticus... Só os peixes, por natureza, se não deixavam domesticar. Por prudência, os restantes animais são, pelo menos em potência, domesticáveis! Em particular, os mamíferos.
....Lição não autorizada por Aristóteles, mas bem fundamentada pelas Escrituras e pelos doutores da Igreja, incluindo José Saramago ...

4.2.14

Mesmo que tivesse um lugar...

Sugere o meu amigo António Souto que, depois dos 50, nos começamos a esgueirar do tempo (O meu tio da América, Human, fevereiro 14). Pode ser que seja verdade, embora no meu caso o mecanismo não funcione. Primeiro porque nunca tive um tio da América. Na verdade, um tio meu viveu muito tempo em África, em Angola. Hoje, vive na Madeira;  não sei se ainda  é África ou apenas uma ilha com jardim à espera de se juntar à Atlântida...
Mesmo que tivesse um lugar para onde me evadir, a viagem seria sem sentido: não mora lá ninguém! Alguns objetos desenham círculos, mas apenas os necessários para isolar a distância: o avião parado sobre o guarda-fatos, o pião por rachar preso ao interdito, o crivo vazio... o joio asfixiou o trigo...
A memória é já só do presente e lembra-me que, também, eu posso ser escravo numa engrenagem que não me pertence. Escravo de uma ordem caprichosa, prenhe de omissões e de compromissos que nada me dizem.
Bom seria que a memória me desse uma mão e me levasse para uma encosta esquecida de que amanhã continua a ser dia!  

3.2.14

Pela voz…

A nora não perdoa!  Hoje, no entanto, a voz  voltou a surpreender-me.

Na visita de estudo ao Palácio nacional de Mafra com os meus alunos do 12º J, o guia, Carlos Coxo, subitamente interrompeu-me pois reconhecera na minha voz o seu antigo  professor de Português dos anos 80 da Escola Secundária de Santa Maria, Sintra. E espantosamente, o Carlos relembrou o nome que me identificava à época: cabeleira. Tudo o resto envelhecera, mas a voz continuava a mesma!

Os meus atuais alunos, felizes com o reconhecimento, tornaram-se mais atentos e disponíveis para “viver” a visita durante duas horas.

Obrigado, Carlos Coxo!

2.2.14

Hoje não fui ver o mar

O de ontem era um mar tranquilo! O de hoje consta que está revolto! Não espanta, pois há tempo que ousamos dizê-lo nosso!
Nada é nosso nem o próprio nada. Somos nados sem saber porquê e partimos quando menos desejamos… No intervalo, fingimos que somos senhores e, demasiadas vezes, utilizamos esse tempo a humilhar quem não mais nem menos é que nós.
E quando nos dizemos nós é porque nos vemos donos do mar…
Hoje não fui ver o mar! Ele veio ter comigo e estive a pô-lo por ordem à semelhança do cronista para o melhor o poder escutar quando ele não estiver comigo… e vou ficar assim…

1.2.14

Tudo tão próximo e tão distante!





Dois planos: 1º plano: construído; 2º plano: em construção.
Duas linhas: 1ª linha: estável, embora finita; 2ª linha: instável, embora sonhadora.
Duas atitudes: 1ª atitude: passiva-institucional; 2ª atitude: ativa –construtiva: individualista; coletivista.
Se saltar da linha, do plano e da atitude, sobram dois grupos: o 1º procura o sol de fevereiro; o 2º procura libertar as rochas do lixo do primeiro.
Se saltar da linha, do plano e da atitude, sobram dois grupos: o 3º procura, através de uma insólita orquestração, o dinheiro que lhe permita, um dia, ocupar a casa dos seus sonhos.
A ação decorre entre o Guincho e Cascais no dia 1 de fevereiro de 2014. Não se vê nem se ouve o vento, mas ele está sempre presente…