17.2.08

Ontem, enquanto circulava na A1

Ontem, enquanto circulava na A1, tive uma série de ideias que me pareciam sensatas e bem capazes de me anteciparem o futuro.

No entanto, hoje (futuro-de-ontem), parecia-me que já tudo esquecera: o presente era mais do que a soma dos factos, incluía possíveis narrativos infinitos, capazes de deslocalizar o paralítico mais indefeso e, sobretudo, esse presente era feito de uma ausência absoluto daquilo a que costumamos chamar realidade. Apetecia pensar que se tratava de uma fantasia bem real, de coerência total:

- Acabei de chegar. Não te posso dizer nada sobre estes meus vizinhos. Deles, sei tanto como tu. Afinal, creio que insistes em perguntar o que andas aqui a fazer!? Já, agora, diz-me o que é que estás aqui a fazer? Olhando para ti, vestido de negro, será que perdeste alguém? Não teria sido melhor teres-te concentrado no Largo do Rato, em frente da sede do PS? Se queres saber, nunca percebi por que motivo nunca foste bispo, ministro, general, qualquer-coisa-assim? De verdade, estas tuas visitas já me começam a irritar. Perdes deliberadamente tempo, o teu tempo, porque o meu já chegou ao fim! Se ainda aqui continuo, é apenas na expectativa de te ver na TV, a arrasar este povo faminto de ideias. Agora, a minha cabeça reduz-se a um movimento vertical, do tecto para a TV e da TV para o tecto, à espera de te ver cumprir, como diria aquele teu amigo, o Pessoa, outro falhado... ao lado, espreita, o António que insiste em ser o Lobo que abocanha o Antunes e para quem o povo deixou de ter redenção por causa dos malandros que há séculos nos governam...

- Bem sei que estas minhas palavras te desagradam, que esperavas que te falasse do passado daquelas tias solteironas que conheceste a ler o Retrato de Ricardina, eternas frustradas porque pai-e-mãe as proibiram de namoriscar o encanto-dos-olhos-delas... onde elas viam encanto, eles viam miséria, promisquidade, e por isso o anátema tornou-se prisão húmida e bolorenta, donde se elevava uma tosse assassina que desfez pulmões e rebentou o coração. Mas, afinal, o que é que isso te pode interessar? Pareces doente, só falas de doentes-a-caminho-da-morte... Bem sei que é difícil encontrar assunto para falar comigo e esperas que eu te possa preencher esta hora com o meu baú das memórias. Mas eu já não tenho baú, leváste-o quando tinhas 10-11 anos e, ainda agora, lembro o que te disse: Nesse baú vai o teu derradeiro enxoval...

- Ao olhar o tecto, surpreende-me a cor das ideias; ao baixar à TV, fugazes imagens soltam-se de não te ver... estas minhas ideias são tão brancas como as tuas. Do tecto à TV, é lá que espero ver-te, ouvir-te... e não aqui.

- Sabes bem que eu já deixei de ser de aqui! Livra-te desses teus amigos maçadores, sobretudo, do Pessoa e do Lobo, e não insistas em convencer os teus alunos... há muito que deixaram de te ouvir. O que eles esperam de ti é que morras, breve... está claro que se souberem destas palavras se irritarão contigo, se esforçarão por te dizer como és magnífico! Mas não acredites! Daqui, donde estou, entre o tecto e a TV, vejo aquele olhar perturbado de quem teme que lhe revelem a inveja, a ambição, a histeria febril, a volúpia e a preguiça assassina...

- Gostei que nos encontrassemos aqui, mas vou parar de dizer o que penso de ti, o quanto me traíste, ao dar-te aquele enxoval e, por favor, desperta, essa carrinha aí, ao lado, parece-me ser do Pepetela, outro dos teus projectos adiados...

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