5.5.07

A escória humana

«Raramente, somos justos com os vivos: ou os adulamos, ou ignoramo-los. E mesmo depois de mortos, temos sobressaltos de carpideiras, para definitivamente colocarmos uma pedra sobre o assunto...» A Cinemateca Portuguesa presenteou-me, hoje, com um fantástico filme indiano, PYAASA, realizado em 1957, mas escrito em 1948. Um filme (musical) do realizador e actor GURU DUTT que interpreta um excelente poeta, incompreendido, desempregado, rejeitado pelos irmãos, condenado a viver nas ruas prostituídas e delinquentes de Bombaim. À beira do abismo, Vijay, o inspirado e mordaz poeta, só encontra algum reconhecimento naqueles(as) que com ele partilham a miséria – as vítimas desclassificadas de uma sociedade que apenas preza o dinheiro. Vijay não consegue publicar qualquer verso, vendo mesmo os seus poemas ser vendidos a peso pelos broncos dos irmãos. Poemas que foram cair nas mãos de uma romântica prostituta que, mais tarde, tudo fará para os ver publicados pelo rico editor que, efemeramente, deu emprego a Vijay… Despedido pelo patrão-editor, rejeitado mais uma vez pela apaixonadíssima namorada (esposa interesseira do editor) - morta a abnegada e impotente mãe, vítima do machismo dos outros filhos – Vijay procura o suicídio que acabará, involuntariamente, por lhe trazer uma morte oficial que o tornará num poeta celebrizado e adulado por todos, sobretudo por aqueles que o tinham rejeitado em vida. Morte oficial, mas não real, pois enquanto os corvos se abatiam sobre os milhões gerados pelos seus versos, ele jazia, sem nome, num hospital psiquiátrico. Descoberta a sua identidade, tudo foi feito pelo editor, pelos irmãos e pelos amigos para o apresentar como um impostor. Um ano depois da sua morte, o editor promoveu uma homenagem ao poeta que denunciava a vilania duma sociedade que tinha como único valor o dinheiro. O poeta acabou por assistir à mascarada organizada em seu nome, revelando que, afinal, estava vivo. Mas essa revelação trouxe um motim que o levou a renegar a sua identidade: naquela magna e manipulada assembleia em fúria, raríssimos eram os que se interessavam pela mensagem da sua poesia. Os próprios correligionários foram ao ponto de o raptar – os poetas. No final, acompanhado de uma casta prostituta que soubera valorizar os seus versos, Vijay volta as costas a Bombaim (à Índia), e caminha numa planície enevoada, liberta da escória humana. Em que é que nos distinguimos da Bombaim de 1957? Quando penso no tempo que vivi nos anos 50 e 60, fico sempre perturbado com a minha ignorância. E sinto que, também, eu fui silenciosamente preparado para não me distinguir da escória humana. NOTA: Este filme foi apresentado pela primeira vez em Portugal, a 22 de Outubro de 1986, na Cinemateca Portuguesa por ocasião da I Retrospectiva do Cinema Indiano.

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