24.11.06

A memória dos rios...

Se a memória não me atraiçoa, estudei em Tomar entre 1971 e 1973. Em 71/72, a chuva caía com abundância. Lembro-me porque, para chegar ao Liceu, percorria de madrugada, numa motorizada CASAL, cerca de 15 Km. Invariavelmente, às 8 horas, chegava ao largo da estação de caminho de ferro, onde se situavam os "anexos" do Liceu. E nesses "anexos", a intempérie obrigava-nos frequentemente a abrir os guardas-chuvas. Para mim, não havia nada de extraordinário: essa chuva que caía sobre mim no percurso e na escola era bem vinda. Se há alguma coisa que eu prefiro na natureza é, concerteza, a chuva... mais do que a própria água. A água só me fascina sob a forma de corrente tumultuosa. A água parada dos paúis (pessoanos ou não), dos lagos, do próprio oceano, enerva-me!
Antes de conhecer o Nabão, já conhecia o Tejo. Habituara-me a contemplá-lo das scalabitanas Portas do Sol. No entanto, só o procurava em tempo de cheias, quando banhava os pés da ribeirinha Santa Iria. O caudal alargava-se de tal modo que conseguia visualizá-lo, para lá de Almeirim e de Alpiarça, a subir o desconhecido Terreiro do Paço. A ideia de uma capital flutuante seduzia-me, dava sentido ao Portugal das caravelas.
Hoje, quando vejo imagens das cheias do Nabão, sinto uma leve frustração. Nos anos 70, as cheias do Nabão, se comparadas com as do Tejo, eram insignificantes: invadiam duas ruas, ameaçavam um outro café... mas nunca me impediram de cumprir a rotina diária: percorrer 30 Km (ida e volta); abrir o guarda-chuva na sala de aula; assistir às aulas com uma sensação de déjà vu; ler o Diário de Lisboa no café Central(?); pedir as obras de Jean-Paul Sartre na Biblioteca local... para me poder aproximar um pouco de Paris e perceber que o Sena parisiense me causaria náusea.
Hoje não vi nem o Tejo nem o Nabão, vi imagens do Nabão e do Tejo, o que não é a mesma coisa: a sucessão de imagens instantâneas destrói a força da corrente que os meus olhos procuram e, sobretudo, que os meus ouvidos poderiam escutar - e sem essa percepção total, sinto-me desligado do fluxo universal.
Desiludido, continuo sem compreender que haja defensores da construção de barragens que estanquem os caudais... que imobilizem as águas. Se conhecessem os rios, não lhes ocupavam os leitos, deixavam-nos acordar suavemente, deixavam-nos correr orgulhosamente para o grande Oceano.
PS: Já naquele tempo tinha a sensação de que a Literatura maltratava os rios. Eram demasiado românticos, faltava-lhes corrente... à excepção do riacho de Bernardim, tumultuoso, que arrastava a indefesa ave para um mar sem fim... E vou ficar por aqui, porque, em mim, começam a jorrar arroios subterrâneos...

2 comentários:

  1. Dois ou três comentários e uma pergunta. Começo por esta, com certeza não é separado? ou tanto faz?
    Agora, um comentário de natureza estético/funcional: o tipo de letra escolhido para os textos não é de fácil legibilidade. Já não vinha aqui há uns tempos, tenho vindo a ler para "trás", li aquele do João Goes. A legibilidade gráfica é tão importante para a compreensão do texto como o "resto". A formatação aqui não ajuda...

    Finalmente, o texto em si. Lindo, gostei muito, foi o "rastilho" para uma estreia no acto de comentar. O final fez-me lembrar o Nepal onde os posters apelam a cada esquina "let the rivers run wild". As razões não serão as mesmas que as suas, porém o propósito é comum.

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  2. Com certeza. Sem dúvida. No melhor pano cai a nódoa!
    Quanto à formatação,vou ter em conta o reparo.
    Obrigado.

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