29.5.06

Exclusão e desertificação

(Expressão clara e revoltada)
Tenho 80 anos. Sou retornada de Angola. Recebo 240 euros de reforma. Tomo conta de um filho que a pátria sacrificou na guerra de Angola. Ele recebe 99 euros de pensão de invalidez. Vive fechado em casa. Não fala com ninguém nem mesmo comigo, a não ser para me dizer que não gosta deste ou daquele prato. Ainda ontem telefonei para a minha filha, não me atendeu. Também telefonei para a minha neta, com o mesmo resultado. Ninguém me ajuda. Há muito tempo que estou doente. A tomar conta deste filho que a pátria sacrificou e esqueceu. Fui à segurança social pedir ajuda, não quiseram saber. Voltei lá, disseram-me que como era dona de um apartamento não me podiam ajudar. Um apartamento que paguei com o suor do meu rosto e do meu marido, já falecido, há muito. Acabaram por me pedir os ordenados de todos os meus filhos. Os meus filhos têm a vida deles. Nasceram em Angola. Procuraram melhor vida na África do Sul. Não tiveram sorte. Partiram para o Brasil, também não. Um deles sei que regressou a Angola. Não sei se já tem emprego. Ele tem muitos filhos. Para que é que a segurança social quer os ordenados deles? Como é que eu posso preencher os papéis, se não sei deles, se eles não me respondem. O senhor presidente, que também serviu a pátria, eu sei, está preocupado com a exclusão daqueles que se encontram nos lares, e eu, senhor presidente, porque é que ninguém se preocupa comigo? Eu tenho 80 anos e o meu filho não tem vida, senhor presidente. O que vai ser de nós? E, sobretudo, dele? A segurança social não quer saber de nós! E o senhor presidente?
(Nocturno)
Deixo o carro no cimo do monte, e avanço, a pé, pela vereda que há muito não percorro. Reparo que o trilho está coberto de cartuchos de munições gastas em recentes caçadas. À volta, ergue-se o mato cada vez mais denso. Percorridos 800 metros, sob um calor de maio escaldante, apercebo-me que me encontro na outra extremidade da propriedade que queria visitar. Contemplo-a e apetece-me voltar para trás: o solo ressequido começa a abrir rachas, as figueiras e as oliveiras estão cercadas por densas plantas agrestes. É quase impossível avançar. Penso no futuro daquelas oliveiras, algumas com centenas de anos, e naquelas figueiras que, no passado, tanto odiei - as figueiras malditas. E vejo todo trabalho de gerações anteriores à minha a arder!
E, hoje, não tive coragem para me aproximar do poço que se encontra junto à ribeira, seca. Nem sequer o vi, completamente escondido pela exuberante e predadora vegetação.

2 comentários:

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